Ao longo da ltima semana, durante o Acampamento Terra Livre (ATL), organizaes indgenas criticaram a tentativa de explorao de petrleo na Amaznia, a falta de demarcao de territrios e a manuteno da Cmara de Conciliao do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF).
Essas e outras contradies da terceira gesto de Lula (PT) foram debatidas durante o 21 Acampamento Terra Livre (ATL), que reuniu cerca de 7 mil indgenas em Braslia, entre 7 e 11 de abril. O evento uma iniciativa da Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (Apib), organizao que rene representantes indgenas de todos os estados do pas.
Cerca de 7 mil indgenas compareceram ao ATL em 2025, em Braslia. Fotos: Fbio Bispo/InfoAmazonia
Lula no visitou o acampamento, no recebeu lideranas indgenas no Palcio do Planalto e tampouco anunciou novas demarcaes — ao contrrio do que ocorreu no evento nos anos anteriores. A ausncia do presidente em 2025 foi interpretada pela Apib como um sinal do ime entre os diferentes partidos que compem a coalizo do governo — que abriga tanto setores comprometidos com a agenda socioambiental quanto foras polticas abertamente contrrias pauta.
“Sabemos quem est do nosso lado e quem no est neste espectro de composio que o governo est composto”, afirmou Kleber Karipuna, coordenador da organizao. Ele afirma que o Congresso “na sua grande maioria formado por parlamentares contrrios causa indgena”.
A InfoAmazonia entrou em contato com a Secretaria de Comunicao da Presidncia para falar sobre as reivindicaes dos povos indgenas e a ausncia de Lula no ATL. At a publicao desta reportagem, o rgo no havia se posicionado.
Povos indgenas na COP30 6b5p6a
A participao indgena efetiva durante a 30 Conferncia das Naes Unidas sobre Mudana do Clima (COP30) foi um dos temas centrais do ATL de 2025. O evento ser em Belm, no Par, em novembro deste ano.
“Queremos estar nas negociaes. No aceitamos mais decises tomadas a portas fechadas sobre nossas vidas, territrios e saberes. A cincia j reconheceu que somos parte da soluo para a crise climtica — por isso, queremos participar das decises e apontar caminhos concretos”, afirmou Dinaman Tux, tambm coordenador da Apib.
Queremos estar nas negociaes. No aceitamos mais decises tomadas a portas fechadas sobre nossas vidas, territrios e saberes. A cincia j reconheceu que somos parte da soluo para a crise climtica — por isso, queremos participar das decises e apontar caminhos concretos.
Dinaman Tux, coordenador da Apib
Considerando que as terras indgenas protegem cerca de 20% das florestas brasileiras, uma das principais reivindicaes dos povos a incluso da demarcao dos seus territrios na Contribuio Nacionalmente Determinada (NDC), a meta climtica criado pelos pases que am o Acordo de Paris para reduo das emisses de gases de efeito estufa (GEE) no mundo.
As NDCs de cada um dos pases signatrios sero discutidas na conferncia em Belm. O Brasil se comprometeu a reduzir as emisses lquidas de gases-estufa no pas de 59% a 67% at 2035, em comparao aos nveis de 2005. No entanto, a proteo dos territrios indgenas no consta explcita no documento como parte desta estratgia.
Para defender a demarcao de terras como uma poltica climtica, os indgenas criaram a campanha “A resposta somos ns”, que tem a adeso de organizaes de outros pases — tambm estiveram presentes no acampamento representantes de povos da Colmbia, Peru, Suriname, Guiana sa, Bolvia, Equador, Oceania e Austrlia.
InfoAmazonia, a ministra do Meio Ambiente e Mudana do Clima, Marina Silva, explicou que ser necessrio um grande esforo para uma possvel incluso da demarcao de territrios na NDC brasileira, j que as metas so “uma metodologia das Naes Unidas”, mas que isso “no impede que internamente os pases faam seus arranjos nacionais”.
“Agora, qualquer coisa que mude essa metodologia, do ponto de vista global, uma negociao que envolve 195 pases, mas cada pas livre para ter o seu prprio processo. Nada impede que a gente busque um caminho, porque de fato os povos indgenas so responsveis pela reduo de emisso de CO2”, disse a ministra.
Nada impede que a gente busque um caminho [para incluir a demarcao nas metas climticas do Brasil], porque de fato os povos indgenas so responsveis pela reduo de emisso de CO2
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudana do Clima
No caso do Brasil, Silva disse que vai levar a demanda para o Comit Interministerial de Mudana do Clima, que envolve 26 ministrios e coordenado pela Casa Civil, com a coordenao-executiva do Ministrio do Meio Ambiente (MMA).
Na quinta-feira (10), Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indgenas, anunciou a criao da Comisso Internacional Indgena para a COP30. O rgo ser responsvel por desenvolver o credenciamento dos povos indgenas, que deve servir de modelo para as conferncias futuras. Tambm sero realizadas reunies com pases-membros e outras agncias da ONU para apresentar as demandas dos povos.
A comisso faz parte do Crculo de Liderana Indgena, anunciado pelo presidente da COP30, Andr Lago, em maro deste ano, e ser presidida pela ministra Guajajara, com participao organizaes como a Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (Coiab), a Apib e o G9 da Amaznia Indgena, que rene representaes dos nove pases da Amaznia Internacional.
Foz do Amazonas e a transio energtica 431a5w
As ministras Marina Silva e Sonia Guajajara se posicionaram contra a explorao de petrleo na Amaznia.
Marchando em direo ao Congresso junto com os indgenas, Silva disse InfoAmazonia que o governo est comprometido com a transio energtica e o fim dos combustveis fsseis.
“Mesmo que a gente consiga alcanar o desmatamento zero, as emisses geradas pelas florestas so 10% das emisses globais. Mais de 80% [das emisses globais] vm de carvo, petrleo e gs. Por isso, a COP28 estabeleceu a transio para o fim dos combustveis fsseis com pases desenvolvidos. Pases em desenvolvimento vm em seguida. O Brasil est comprometido com a agenda da transio energtica de forma justa e planejada”, disse.
No entanto, a ministra no confirmou se haver a liberao da explorao de petrleo na Foz Amazonas, indicando que a deciso depende de grupo mais amplo dentro do governo, do qual o MMA faz parte: “Quem decide sobre a matriz energtica o Conselho Nacional de Poltica Energticas”, afirmou.
Marina Silva diz que pas est comprometido com reduo dos combustveis fsseis, mas que deciso sobre Foz do Amazonas depende de grupo mais amplo no governo. Foto: Fbio Bispo/InfoAmazonia
A explorao de petrleo na Foz do Amazonas aguarda anlise do pedido de licenciamento ambiental, que j foi negado trs vezes pela rea tcnica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama). Alm disso, um leilo para outros 47 blocos na regio est marcado para 17 de junho.
“ contraditrio o governo dizer que precisamos fazer uma transio energtica justa e ao mesmo tempo leiloar novos blocos na Foz do Amazonas. Essa uma preocupao grande, porque quem de fato impactado somos ns”, defendeu Luene Karipuna, da Terra Indgena (TI) Ua, uma das que podem ser impactadas com a explorao de petrleo na Foz do Amazonas.
Presente no ATL, o cacique Raoni Metuktire — lder do povo Kayap de 93 anos, que subiu a rampa do Planalto com Lula em janeiro de 2023 — disse que “as pessoas no indgenas” esto atacando os povos “por causa dos recursos naturais” existentes nos territrios.
No incio deste ms, ele se encontrou com Lula e pediu que o presidente no avance com a explorao de petrleo na Foz do Amazonas. “Se isso acontecer [a explorao do petrleo], eu sou paj tambm, eu j tive contato com espritos que sabem do risco que a gente tem de continuar trabalhando dessa forma: de destruir, destruir e destruir, com consequncias muito grandes, que no conseguiremos parar”, alertou o lder ao presidente.
MPI pode se retirar de conciliao no STF 2j2o5i
Na sexta-feira (11), ltimo dia do evento, a Apib divulgou o documento final do ATL. A carta elenca as principais reivindicaes dos povos indgenas que, apesar de terem conquistado protagonismo em cargos estratgicos no governo federal — como o Ministrio dos Povos Indgenas (MPI) e a Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai) —, ainda enfrentam a falta de oramento e de autonomia.
“Representao sem estrutura no transforma realidades. Reivindicamos oramento, pessoal e autonomia para polticas pblicas feitas de parente para parente, respeitando a diversidade de nossos povos e territrios”, diz trecho do documento.
Em marcha at o Congresso Nacional, organizaes indgenas levaram uma rplica da esttua da Justia. Foto: Jullie Pereira/InfoAmazonia
Outro ponto destacado , mais uma vez, o marco temporal, em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma Cmara de Conciliao, criada pelo ministro Gilmar Mendes. A mesa discute as alteraes legislativas aprovadas pela Lei 14.701/2023, que promove a abertura dos territrios para a explorao econmica e altera os processos de demarcaes.
“A terra nossa por direito – no invadimos territrio de ningum. Confiamos no Supremo Tribunal Federal, que j declarou a inconstitucionalidade do marco temporal e agora tem o dever de proteger novamente nossos direitos”, defendem os indgenas na carta.
A Apib se retirou da Cmara em agosto do ano ado denunciando “condies inaceitveis” para o dilogo. O movimento pede o fim da conciliao e classifica a negociao como “maior retrocesso desde a Constituio de 1988 para os povos indgenas”, segundo declarou Kleber Karipuna.
No entanto, a conciliao segue mantida por Mendes mesmo sem a principal organizao indgena do pas. Em fevereiro deste ano, o ministro chegou a incluir a minerao nos territrios como uma das propostas da mesa.
InfoAmazonia, Sonia Guajajara sinalizou que o MPI tambm poder se retirar da conciliao. Segundo a ministra, o rgo se manteve na mesa para “fazer a defesa dos povos indgenas”.
“No momento que a gente percebe que no possvel continuar e estabelecer nenhum consenso, a gente tambm vai fazer essa avaliao e dar um o atrs”, afirmou Guajajara.
Os indgenas denunciam que a conciliao sofre presso do Congresso, que, por meio de seus participantes na mesa, estaria fazendo lobby para beneficiar mineradoras e garimpeiros.
“Tanto que o advogado da Potssio do Brasil, mineradora que est tentando explorar potssio no territrio do povo Mura, no Amazonas, esteve a todo momento incidindo na conciliao. Na nossa avaliao, a proposta de minerao que veio de Gilmar Mendes tem total contribuio do advogado da Potssio do Brasil”, afirmou Karipuna em coletiva aos jornalistas durante o acampamento.
Nesta tera-feira (15), o ministro Gilmar Mendes receber uma comitiva do povo Munduruku. A lder Alessandra Munduruku afirmou InfoAmazonia que “o ministro est do lado do agronegcio e das mineradoras” e que os povos indgenas no vo desistir da sua luta contra a Cmara de Conciliao.
“A gente sabe que ele uma cascadura. Sabemos que ele defende o agronegcio. Ns vamos dizer pra ele parar com a mesa de conciliao, porque ns sabemos por onde a o agronegcio e a gente vai pra luta. No podemos ter medo do ministro Gilmar”, declarou Alessandra Munduruku.
Alessandra Munduruku diz que povos indgenas no vo desistir da luta contra a Cmara de Conciliao. Foto: Fbio Bispo/InfoAmazonia.
Indgenas agredidos por polcia legislativa 4s6q4t
Alm disso, tambm na quinta-feira, aps marcharem at o Congresso, um grupo de indgenas que ou o gramado foi recebido com bombas de gs. Pelo menos 20 pessoas ficaram feridas, entre elas a deputada federal Clia Xakriab (PSOL-MG).
Um dia antes, durante reunio preparatria para o ato, um servidor do Itamaraty, identificado como Aldegundes Batista Miranda, teria estimulado as agresses. Durante a reunio, Miranda afirmou que era para deixar os indgenas descerem para o gramado: “Deixa descer e mete o cacete se fizer baguna”.
O Itamaraty informou que o servidor foi afastado para “apurao de responsabilidade”. O rgo tambm disse “deplorar o ocorrido” e esclareceu que Aldegundes “no foi instrudo a manifestar-se nos termos noticiados”.
Indgenas foram recebidos com bombas de gs lacrimogneo no Congresso Nacional, durante o ATL de 2025 Foto: Jullie Pereira/InfoAmazonia
Sobre o autor
Jullie Pereira 5c2215
Reprter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redaes locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questes pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e... Mais por Jullie Pereira
Fbio Bispo 432n3g
Reprter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redaes locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questes pouco cobertas em todo o mundo. Ele... Mais por Fbio Bispo
A obra ocorre desde 2022 e deve ser concluda em 2027. Dentre os possveis impactos previstos, est a destruio de 105 nascentes e afluentes das bacias do Xingu, Tapajs e Tocantins-Araguaia.
A construo da Ferrovia de Integrao Centro-Oeste (FICO) deve impactar 24 terras indgenas na Amaznia Legal, sendo 23 em Mato Grosso e uma em Rondnia. Um levantamento da InfoAmazonia revela ainda que a obra atravessar 105 nascentes e afluentes de trs importantes bacias hidrogrficas brasileiras: Xingu, Tocantins-Araguaia e Tapajs e pode contaminar e destruir cursos d’gua fundamentais para a regio.
Iniciada em 2022, a ferrovia foi orada em R$ 7,2 bilhes, com previso de concluso em 2027. O projeto, que est em fase de estudos para licenciamento socioambientais, prev uma rea de influncia direta
A rea de influncia direta a regio onde os impactos de um empreendimento ou atividade so mais intensos e imediatos, afetando diretamente o meio ambiente e as comunidades locais.
de 50 quilmetros, na qual comunidades indgenas podero sofrer com desmatamento, eroso e mudanas nos fluxos hdricos.
A anlise da reportagem se baseou no Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da FICO, disponibilizado pela Infra.SA, empresa pblica brasileira vinculada ao Ministrio do Transportes e responsvel pela fiscalizao dos trabalhos realizados pelo setor privado na ferrovia. Tambm foram analisados os dados de localizao das TIs, disponibilizados pela Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai), com sobreposio ao traado da ferrovia. O EIA/RIMA um estudo que avalia os impactos ambientais de uma determinada obra. O EIA tcnico, e o RIMA apresenta as concluses de forma vel ao pblico.
A InfoAmazonia identificou que seis dessas terras – Manoki, Irantxe, Utiariti, Tirecatinga, Nambikwara e Vale do Guapor – esto a menos de 10 quilmetros da linha da ferrovia, tornando-se mais vulnerveis aos impactos da obra e presso da expanso agrcola. O traado a pelos municpios de gua Boa, Lucas do Rio Verde, Gacha do Norte, Canarana, Paranatinga e outros com economias ligadas ao agronegcio.
A FICO ter um trajeto de 1.641 km, cortando o Mato Grosso de leste a oeste, dividido em trs trechos: 383 km entre Mara Rosa (GO) e gua Boa (MT), 505 km de gua Boa a Lucas do Rio Verde (MT) e 646 km entre Lucas do Rio Verde (MT) e Vilhena (RO). Parte do Novo Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), a ferrovia servir para escoar a produo agrcola e incentivar a explorao mineral no Cerrado e na Amaznia, conforme informaes da Infra S.A.
Alm disso, a FICO se insere em um conjunto de obras que fazem parte do projeto da Ferrovia Transcontinental, tambm da Infra S.A. Planejada para ter cerca de 4.400 km de extenso no territrio brasileiro, ela conectar o Porto de Au, no Rio de Janeiro, a Boqueiro da Esperana, no Acre. Esse projeto parte de uma proposta maior para criar uma ligao ferroviria entre os oceanos Atlntico, no Brasil, e Pacfico, no Peru. A FICO, especificamente, conectaria as BRs 158 e 163.
Comunidade indgena impactada 184o1z
Entre os 105 corpos d’gua que devem ser impactados pela obra, a reportagem mapeou que trs deles esto na nascente do rio Xingu: o rio Sete de Setembro, o rio Batovi e o rio Curisevo. A anlise identificou que a obra a fora da Terra Indgena do Xingu, mas atravessa as nascentes dos rios que correm na regio, o que pode impactar na qualidade e na quantidade de gua no territrio, com poluio e assoreamento em razo da obra.
Aldeia Ulupwene, ‘ilha’ banhada pelos rios Ulupwene e Tamitatoala. Crdito: Pirat Waur. / InfoAmazonia
Na aldeia Ulupuwene, localizada na Terra Indgena Batovi, dentro do Parque Indgena do Xingu (TIX), a comunidade, que depende dos rios para alimentao, higiene e lazer, tem o apoio da Associao Terra Indgena do Xingu (ATIX) em um Grupo de Trabalho de Componente Indgena. Esse grupo monitora os impactos da FICO e da BR-242 no territrio, acompanhando os estudos, realizando reunies com os responsveis pelas obras e mantendo contato com rgos do governo federal.
A comunidade banhada pelas nascentes da bacia do Xingu: o rio Tamitatoala (ou Batovi) e o rio Ulupuwene (tambm chamado de Bakairi), que esto entre os 105 corpos d’gua que devem ser impactados. Localizada na ponta oeste da TIX, na divisa entre o territrio do Xingu e fazendas produtoras de soja e milho, a comunidade est vulnervel a tudo o que ocorre fora da rea demarcada.
Professor na aldeia Ulupuwene, Hukai Waur formado em Cincias da Cultura pela Universidade Federal do Gois, e membro do Grupo de Trabalho de Componente Indgena da ATIX. Ele conta que a regio tem sofrido presso do agronegcio, o que pode piorar com a chegada da FICO.
“Nas cabeceiras dos dois rios [que correm na aldeia] est tudo desmatado pelos fazendeiros. A lavoura est colada nos rios. A gente entende que os proprietrios jogam os venenos na soja e cai no rio Bakairi e Tamitatoala, que onde a gente se alimenta. Acredito que a gente est consumindo com os venenos [agrotxicos], ento isso nos deixa preocupados”, diz Hukai.
Hukai Waur alerta que os efeitos da FICO sero permanentes, e que por isso o governo federal deve estar preparado para atender as demandas dos povos indgenas Crdito: Pirat Waur / InfoAmazonia
Nas cabeceiras dos dois rios [que correm na aldeia] est tudo desmatado pelos fazendeiros. A lavoura est colada nos rios.
Hukai Waur, professor na aldeia Ulupuwene
Para evitar os avanos da FICO, os indgenas cobram do governo federal um relatrio que liste os reais impactos que a obra vai causar na regio da Ulupuwene.
“Em 2024, o governo no s atendeu, como mandou os pesquisadores que andaram nas aldeias conversando com as comunidades. At agora no apresentaram relatrio. Eles tm que apresentar relatrio para a gente aprovar ou no. Temos que saber qual impacto vamos sofrer, como que a gente vai sobreviver com isso daqui mais futuramente”, explica Hukai.
Em 1985, a cobertura florestal em Mato Grosso — o principal estado impactado pela FICO — era de 80.239.031 hectares. Em 2023, essa rea foi reduzida em 31%, caindo para 55.230.962 hectares, conforme dados da Plataforma MapBiomas. O uso da terra para agropecuria e lavoura no estado tambm aumentou drasticamente, ando de 9.747.376 hectares para 34.715.252 hectares no mesmo perodo, um crescimento superior a 256%.
Entre 1985 e 2023, as nascentes da bacia do rio Xingu perderam 46% de sua superfcie de gua. Em 1985, o volume de gua na regio era de 117 mil hectares, mas, em 2024, era de cerca de 62.735 hectares: uma perda de 54.376 hectares, segundo dados do MapBiomas. Isso significa que, em 38 anos, as reas midas (rios, lagos e outras fontes d’gua) perderam quase metade de seu territrio.
Um dos primeiros moradores e liderana da aldeia Ulupuwene, Yaponuma Waur diz: “Como estamos na fronteira da rea indgena, a gente fica preocupado. Ouvi a histria de que vo trazer a BR-242 e a ferrovia, que vo trazer problemas para ns. Por que esses projetos causam problema? Isso vai acelerar bastante o desmatamento para o nosso territrio e aumentar as reas urbanas nos arredores”.
Para a safra 2023/2024, Mato Grosso plantou mais de 11 milhes de hectares de soja, consolidando-se como o maior produtor nacional, com 25% da produo do pas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).
O rio Ulupwene est dentro da comunidade e parte da rotina dos que ali vivem. Imagem: Gabriel Bicho/InfoAmazonia
Nascentes vulnerveis h anos 6p5r3p
No final dos anos 1990, a biloga Rosely Alves Sanches, pesquisadora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), foi convidada pelo Instituto Socioambiental (ISA) para iniciar um dilogo entre os povos indgenas do Xingu e as comunidades ao redor, em cidades de Mato Grosso como Canarana, Querncia e Gacha do Norte. As comunidades indgenas estavam preocupadas com a mudana na qualidade das nascentes e a diminuio dos peixes.
“O ISA tinha um trabalho muito focado para dentro do territrio indgena, mas havia uma demanda por parte de lideranas indgenas naquela poca com a questo das nascentes do Xingu, que ficaram fora durante todo processo de demarcao do Parque Indigena do Xingu”, explicou a pesquisadora.
Assim, comeou no incio dos anos 2000 o projeto Yikatu Xingu, que consistia na construo de um dilogo com o objetivo de proteo das nascentes. Alm de reunir diferentes grupos, como governos municipais, pequenos e grandes agricultores, lideranas indgenas e populao local para discutir aes, o projeto resultou na criao da organizao Sementes do Xingu, que rene coletores de sementes da regio que revendem os produtos da natureza para reflorestamento local. Mas os problemas no deixaram de existir.
Sanches tambm estudou as nascentes do Xingu e sua importncia ambiental. Ela identificou uma floresta adaptada ao clima, com razes profundas que buscam gua no subterrneo. A regio, entre a Amaznia e o Cerrado, possui reas midas essenciais para a produo hdrica e pesqueira, mas essas reas vm se perdendo fora do Parque Indgena do Xingu.
Em 2022, o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema-MT) aprovou a drenagem de reas midas para outros usos, gerando crticas por comprometer a produo de gua e peixes. “Comeou a me chamar ateno que dentro do Parque Xingu, voc v as lagoas, os lagos. Mas fora do Xingu hoje, atualmente, a gente tem observado que cada vez mais essas reas esto desaparecendo”, alerta.
O rio Ulupwene corre dentro da aldeia e, para os Wauja, mercado, banho, brincadeira, vida. O povo teme que o rio seque com a agem da FICO Crdito: Pirat Waur / InfoAmazonia
O cacique e paj da aldeia Ulupuwene, Elewok Waur, foi morar na Terra Indgena Batovi em 2010, junto a seus irmos. Nascido na aldeia Piyulaga, na regio central do territrio Xingu, ele decidiu se mudar quando percebeu que a regio comeou a ser ocupada por no indgenas para fins de pesca, caa e outros. Sua preocupao com o uso de agrotxicos em lavouras prximas s nascentes, mas tambm com a proteo da mata. No trajeto antes de chegar ao Parque do Xingu, est localizada uma rea de cerca de 10 km que pertence reserva legal
A reserva legal a rea dentro de uma propriedade rural que deve ser preservada com vegetao nativa, garantindo o equilbrio ecolgico. Seu percentual varia conforme o bioma, conforme previsto no Cdigo Florestal.
de uma fazenda. Elewok quer que o trecho seja preservado para que o desmatamento no se aproxime mais de seu povo.
da floresta, como conta o cacique, que vem o material com que o povo Wauja faz suas casas e os remdios que ele, como paj, usar na cura dos pacientes, a comida e os trabalhos de arte, como a cermica e a tinta para o grafismo.
O povo Wauja conhecido e reconhecido pela produo de peas de cermica tradicional. Imagem: Gabriel Bicho/InfoAmazonia
“Aqui o ar diferente. o ar limpo. Quando voc sai dentro do territrio para fora, a respirao que voc sente l diferente: voc sente o cheiro do veneno. Estou muito preocupado com o futuro, no sei como vai ser daqui mais para frente. Estou aconselhando os jovens que continuem nesta luta que eu estou fazendo e para no abrir mo para os no indgenas destruir nossa riqueza. como eu falei: daqui a gente tira nossa alegria. Se no tiver natureza, a gente no tem liberdade de alegria”, conta Elewok.
Aqui o ar diferente. o ar limpo. Quando voc sai dentro do territrio para fora, a respirao que voc sente l diferente: voc sente o cheiro do veneno.
cacique e paj da aldeia Ulupuwene, Elewok Waur
Falando em Aruak, sua lngua nativa, o cacique Elewok Waur alertou sobre a vulnerabilidade da aldeia Ulupwene diante da expanso da ocupao no indgena na regio Crdito: Pirat Waur / InfoAmazonia
Infra S.A 705w7
Procurada pela reportagem, a Infra S.A, responsvel pela ferrovia, respondeu por meio de assessoria de imprensa que o licenciamento prvio para toda a extenso da FICO foi obtido junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA), com base em estudos de impacto na rea de influncia do empreendimento. O Instituto foi procurado, mas no respondeu reportagem
“Todos os cursos d’gua localizados na rea de influncia da ferrovia foram objeto de estudos tcnicos que so avaliados pelos rgos ambientais competentes para determinar, na fase de instalao do empreendimento, as medidas pertinentes de proteo e monitoramento. Dentre os programas comumente executados na fase de instalao, esto aes de superviso ambiental das obras, monitoramento de efluentes e recursos hdricos, processos erosivos e aes para recuperao de reas degradadas e de matas ciliares”, afirmam em resposta.
Afirmam ainda que “para as comunidades tradicionais situadas na rea de influncia do empreendimento, so elaborados estudos especficos que avaliam os eventuais impactos e medidas para mitigao e/ou compensao. No caso de povos indgenas, o trabalho supervisionado pela Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai) e no caso de comunidades quilombolas, as atividades so acompanhadas pelo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra).
Esta reportagem foi produzida por jornalistas bolsistas da segunda edio do curso de Jornalismo Investigativo Ambiental e Geojornalismo, oferecido com o apoio da Earth Journalism Network da Internews, e parte do eixo educacional da InfoAmazonia.
Sobre o autor
Erika Artmann v6953
Jornalista mato-grossense formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Se interessa por temas como direitos humanos, arqueologia e meio ambiente, entre outros. Recebeu o prmio Intercom... Mais por Erika Artmann
Termmetro de rua na Tijuca registra a onda de calor que atinge a cidade do Rio de Janeiro, no dia 03 de maro de 2024. Foto: Fernando Frazo/Agncia Brasil
Salada Verde
Sua poro fresquinha de informaes sobre o meio ambiente
O Governo Federal publicou, na ltima semana, um decreto que regulamenta lei sobre renegociao de dvidas estaduais com a Unio e que, em suas especificidades, traz impacto positivo para a ao climtica em nvel nacional.
O decreto em questo regulamenta a Lei Complementar n 212, de janeiro de 2025, que instituiu o Programa de Pleno Pagamento de Dvidas dos Estados (Propag). A nova poltica de renegociao das dvidas estaduais com a Unio oferece juros mais baixos aos estados e permite o parcelamento em at 30 anos.
Uma das contrapartidas do Programa beneficia diretamente a agenda do clima: para ar os benefcios, os estados devem investir entre 0,5 e 2% do saldo devedor em algumas aes definidas, entre elas aes voltadas adaptao climtica.
Para os estados que no possuem dvidas com a Unio, a norma define a possibilidade de adeso ao programa, a fim de ar recursos do Fundo de Equalizao Federativa (FEF), que direciona investimentos em aes que incluem adaptao s mudanas do clima.
Cristiane Prizibisczki 3t6s2e
Jornalista com quase 20 anos de experincia na cobertura de temas como conservao, biodiversidade, poltica ambiental e mudanas climticas. J escreveu para UOL, Editora Abril, Editora Globo e Ecosystem Marketplace e desde 2006 colabora com ((o))eco. Adora ser a voz dos bichos e das plantas. →
Balsa para extrao ilegal de outo flagrada no Rio Jamanxim, na Floresta Nacional Itaituba 2, no Par. Foto: Felipe Werneck/Ibama
Apresentado este ms, um relatrio do WRI, sigla em Ingls do Instituto de Recursos Mundiais, pe uma lupa sobre cinco tipos de crimes ambientais e suas costumeiras conexes com ilegalidades financeiras, corrupo e atropelo de direitos humanos. Problemas brasileiros so citados.
Conforme o publicado pela ong, baseada em Washington (Estados Unidos), no possvel enfrentar de verdade a mudana do clima, a perda de biodiversidade e a injustia social sem frear ilcitos como na minerao, extrao de madeira, pesca, comrcio de vida selvagem e grilagem de terras.
“Esses crimes destroem alguns dos ecossistemas mais cruciais do mundo e geram violncia e medo nas comunidades. Eles so complexos e dependem da corrupo em nveis locais e da criminalidade nos sistemas financeiros globais e nas cadeias de suprimentos”, destaca o trabalho.
As complicaes brasileiras citadas nas cerca de 80 pginas do relatrio incluem, por exemplo, o desmatamento, a apropriao de terras pblicas, a explorao criminosa de madeira e ouro, o comrcio ilegal ou o uso desmedido de vida selvagem.
O desmatamento na Amaznia brasileira cai desde 2022, mas a degradao florestal bate recordes e a formao de pastagens para a boiada segue como um dos principais motores do desmate ilegal no pas, aponta o documento. O crime muitas vezes associado tomada de terras pblicas.
Um episdio lembrado do municpio de So Flix do Xingu (PA), um dos lderes em destruio da Amaznia. Seu prefeito foi acusado de liderar redes para desmatar e grilar, at terras indgenas. O mandatrio j foi multado em mais de R$ 7,5 milhes pelo Ibama.
De acordo com o relatrio, a explorao criminosa de madeira e seus lucros estimulam o desmatamento e esto frequentemente associados corrupo e ao crime organizado. As madeiras ilcitas viriam sobretudo de reas desmatadas para agropecuria.
Quanto minerao ilegal no Brasil, a anlise aponta que ela se expandiu quase 500% em territrios indgenas, entre 2010 e 2020. Conhecida como “capital do ouro ilegal”, a cidade de Itaituba (PA) resiste a esforos governamentais para combater o ilcito.
Bexigas natatrias secas venda na ilha de Lantau, em Hong Kong, um territrio autnomo no sudeste da China. Elas so usadas especialmente em sopas. Foto: Shankar S/Creative Commons
Sobre o comrcio ilegal ou explorao excessiva de vida selvagem, o documento destaca que Brasil, Uganda, Tanznia, Vietn e ndia so os pases que mais fornecem bexigas natatrias de peixes para pases asiticos, como a China, ou de 58% a 70% do comrcio mundial.
Por aqui, a captura e o comrcio de vsceras de espcies como a a pescada amarela (Cynoscion acoupa) e a corvina do Atlntico (Micropogonias spp) crescem ao longo das costas norte e nordeste do pas, inclusive associadas pescarias ilegais em reas protegidas, como mostrou ((o))eco.
Adiante, o relatrio da WRI diz que enfrentar crimes ambientais exige estratgias como fortalecer estruturas jurdicas, sanes, abordagens multissetoriais, ferramentas e tecnologias inovadoras, reduzir ilcitos financeiros e corrupo, bem como proteger comunidades rurais e indgenas.
Aldem Bourscheit h6w1w
Jornalista cobrindo h mais de duas dcadas temas como Conservao da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Cincia, Agron... →
Fbricas de natureza: por que a conservao da biodiversidade essencial para planejar o uso do territrio?
Foto: Divulgao n1b1w
Mais do que nunca, necessrio internalizar que a natureza nossa principal tecnologia e a maior aliada no enfrentamento das mudanas climticas
Florestas, campos, vrzeas e demais ecossistemas naturais so verdadeiras fbricas essenciais para o desenvolvimento humano e territorial. So elas que produzem, diariamente, gua limpa, ar puro, regulao climtica, sequestro de carbono e outros servios ambientais fundamentais, usufrudos por toda a sociedade. Esses ambientes formam a base da segurana econmica, social e climtica — e, por isso, devem ser reconhecidos e valorizados como reas produtivas.
Mais do que nunca, necessrio internalizar que a natureza nossa principal tecnologia e a maior aliada no enfrentamento das mudanas climticas. No entanto, para garantir um desenvolvimento pleno e a verdadeira resilincia frente a esse desafio global, urgente uma atuao mais ampla, sistmica e integrada ao territrio.
Sociedade civil, poder pblico e setor privado precisam compreender que a natureza no respeita fronteiras istrativas e est presente de forma interdependente no cotidiano de todos ns.
preciso inovar na gesto e propor modelos mais ousados, que considerem a vocao dos territrios e promovam solues que conciliem conservao com prosperidade — especialmente, em regies estratgicas como a Grande Reserva Mata Atlntica, um dos maiores remanescentes contnuos do bioma, com papel crucial para a segurana hdrica, climtica e ecolgica do sul e sudeste do Brasil.
No estado do Paran, por exemplo, a SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educao Ambiental) atua diretamente na implementao de aes voltadas ao fortalecimento da gesto territorial, por meio de um contrato estabelecido com a Sanepar. Esse trabalho tem foco na regio paranaense da Grande Reserva Mata Atlntica e na rea de atuao do Programa Condomnio da Biodiversidade, promovendo a proteo dos mananciais e a conservao dos ecossistemas estratgicos para a qualidade de vida de milhes de pessoas.
Um bom exemplo dessa urgncia est no leste do estado. A regio abriga um continuum de ambientes naturais de enorme relevncia para a segurana climtica, incluindo vastas reas de Mata Atlntica e ecossistemas associados — serras, manguezais, florestas e campos. Essa paisagem natural conecta-se diretamente metrpole de Curitiba e seus cerca de 3 milhes de habitantes, alm de influenciar toda a dinmica socioambiental do litoral paranaense.
O territrio carrega vocao para um desenvolvimento inovador e disruptivo, baseado na gesto territorial integrada e em solues que valorizem os ativos naturais locais. Para isso, preciso romper com a viso ultraada de que apenas o crescimento econmico imediato importa e reconhecer o valor estratgico da conservao na proviso de gua, segurana hdrica, equilbrio climtico e bem-estar coletivo.
Essa no uma ideia nova — e exemplos bem-sucedidos reforam sua eficcia. Um dos casos mais emblemticos o de Nova York, que desde a dcada de 1980 realiza aes de conservao nos mananciais localizados a cerca de 200 km da cidade. Com essa estratgia, a gua que abastece mais de 8 milhes de pessoas no precisa de tratamento convencional, sendo apenas clorada e fluoretada antes da distribuio. Isso gera economia para a empresa de abastecimento, qualidade para o consumidor e mltiplos benefcios biodiversidade, ao clima e sociedade.
Fotos: Reproduo
No Paran, merece destaque a atuao da Sanepar na proteo dos mananciais que abastecem Curitiba e em relao necessidade de uma gesto territorial integrada. Trata-se de um o importante rumo consolidao de uma nova viso de desenvolvimento, capaz de produzir futuro com equilbrio e inteligncia. A companhia demonstra preocupao com o assunto no somente em Curitiba, mas em todos os municpios do estado onde atua, uma vez que o assunto prerrogativa da Poltica de Sustentabilidade da Sanepar.
O caminho ainda longo. Mas , justamente, pela sua complexidade que ele precisa ser percorrido com ambio, viso estratgica e compromisso coletivo. Investir em natureza investir em segurana, estabilidade e vida.