Brasil : Ferrovia de Integrao Centro-Oeste afetar 24 terras indgenas em Mato Grosso e Rondnia
Enviado por alexandre em 25/04/2025 00:34:54

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A obra ocorre desde 2022 e deve ser concluda em 2027. Dentre os possveis impactos previstos, est a destruio de 105 nascentes e afluentes das bacias do Xingu, Tapajs e Tocantins-Araguaia.

A construo da Ferrovia de Integrao Centro-Oeste (FICO) deve impactar 24 terras indgenas na Amaznia Legal, sendo 23 em Mato Grosso e uma em Rondnia. Um levantamento da InfoAmazonia revela ainda que a obra atravessar 105 nascentes e afluentes de trs importantes bacias hidrogrficas brasileiras: Xingu, Tocantins-Araguaia e Tapajs e pode contaminar e destruir cursos d’gua fundamentais para a regio.

Iniciada em 2022, a ferrovia foi orada em R$ 7,2 bilhes, com previso de concluso em 2027. O projeto, que est em fase de estudos para licenciamento socioambientais, prev uma rea de influncia direta

A rea de influncia direta a regio onde os impactos de um empreendimento ou atividade so mais intensos e imediatos, afetando diretamente o meio ambiente e as comunidades locais.
de 50 quilmetros, na qual comunidades indgenas podero sofrer com desmatamento, eroso e mudanas nos fluxos hdricos.

A anlise da reportagem se baseou no Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da FICO, disponibilizado pela Infra.SA, empresa pblica brasileira vinculada ao Ministrio do Transportes e responsvel pela fiscalizao dos trabalhos realizados pelo setor privado na ferrovia. Tambm foram analisados os dados de localizao das TIs, disponibilizados pela Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai), com sobreposio ao traado da ferrovia. O EIA/RIMA um estudo que avalia os impactos ambientais de uma determinada obra. O EIA tcnico, e o RIMA apresenta as concluses de forma vel ao pblico.

A InfoAmazonia identificou que seis dessas terras – Manoki, Irantxe, Utiariti, Tirecatinga, Nambikwara e Vale do Guapor – esto a menos de 10 quilmetros da linha da ferrovia, tornando-se mais vulnerveis aos impactos da obra e presso da expanso agrcola. O traado a pelos municpios de gua Boa, Lucas do Rio Verde, Gacha do Norte, Canarana, Paranatinga e outros com economias ligadas ao agronegcio.

A FICO ter um trajeto de 1.641 km, cortando o Mato Grosso de leste a oeste, dividido em trs trechos: 383 km entre Mara Rosa (GO) e gua Boa (MT), 505 km de gua Boa a Lucas do Rio Verde (MT) e 646 km entre Lucas do Rio Verde (MT) e Vilhena (RO). Parte do Novo Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), a ferrovia servir para escoar a produo agrcola e incentivar a explorao mineral no Cerrado e na Amaznia, conforme informaes da Infra S.A.

Alm disso, a FICO se insere em um conjunto de obras que fazem parte do projeto da Ferrovia Transcontinental, tambm da Infra S.A. Planejada para ter cerca de 4.400 km de extenso no territrio brasileiro, ela conectar o Porto de Au, no Rio de Janeiro, a Boqueiro da Esperana, no Acre. Esse projeto parte de uma proposta maior para criar uma ligao ferroviria entre os oceanos Atlntico, no Brasil, e Pacfico, no Peru. A FICO, especificamente, conectaria as BRs 158 e 163.

Comunidade indgena impactada 184o1z

Entre os 105 corpos d’gua que devem ser impactados pela obra, a reportagem mapeou que trs deles esto na nascente do rio Xingu: o rio Sete de Setembro, o rio Batovi e o rio Curisevo. A anlise identificou que a obra a fora da Terra Indgena do Xingu, mas atravessa as nascentes dos rios que correm na regio, o que pode impactar na qualidade e na quantidade de gua no territrio, com poluio e assoreamento em razo da obra.

Aldeia Ulupwene, ‘ilha’ banhada pelos rios Ulupwene e Tamitatoala. Crdito: Pirat Waur. / InfoAmazonia

Na aldeia Ulupuwene, localizada na Terra Indgena Batovi, dentro do Parque Indgena do Xingu (TIX), a comunidade, que depende dos rios para alimentao, higiene e lazer, tem o apoio da Associao Terra Indgena do Xingu (ATIX) em um Grupo de Trabalho de Componente Indgena. Esse grupo monitora os impactos da FICO e da BR-242 no territrio, acompanhando os estudos, realizando reunies com os responsveis pelas obras e mantendo contato com rgos do governo federal.

A comunidade banhada pelas nascentes da bacia do Xingu: o rio Tamitatoala (ou Batovi) e o rio Ulupuwene (tambm chamado de Bakairi), que esto entre os 105 corpos d’gua que devem ser impactados. Localizada na ponta oeste da TIX, na divisa entre o territrio do Xingu e fazendas produtoras de soja e milho, a comunidade est vulnervel a tudo o que ocorre fora da rea demarcada.

Professor na aldeia Ulupuwene, Hukai Waur formado em Cincias da Cultura pela Universidade Federal do Gois, e membro do Grupo de Trabalho de Componente Indgena da ATIX. Ele conta que a regio tem sofrido presso do agronegcio, o que pode piorar com a chegada da FICO.

“Nas cabeceiras dos dois rios [que correm na aldeia] est tudo desmatado pelos fazendeiros. A lavoura est colada nos rios. A gente entende que os proprietrios jogam os venenos na soja e cai no rio Bakairi e Tamitatoala, que onde a gente se alimenta. Acredito que a gente est consumindo com os venenos [agrotxicos], ento isso nos deixa preocupados”, diz Hukai.

Hukai Waur alerta que os efeitos da FICO sero permanentes, e que por isso o governo federal deve estar preparado para atender as demandas dos povos indgenas Crdito: Pirat Waur / InfoAmazonia

Nas cabeceiras dos dois rios [que correm na aldeia] est tudo desmatado pelos fazendeiros. A lavoura est colada nos rios.

Hukai Waur, professor na aldeia Ulupuwene

Para evitar os avanos da FICO, os indgenas cobram do governo federal um relatrio que liste os reais impactos que a obra vai causar na regio da Ulupuwene.

“Em 2024, o governo no s atendeu, como mandou os pesquisadores que andaram nas aldeias conversando com as comunidades. At agora no apresentaram relatrio. Eles tm que apresentar relatrio para a gente aprovar ou no. Temos que saber qual impacto vamos sofrer, como que a gente vai sobreviver com isso daqui mais futuramente”, explica Hukai.

Em 1985, a cobertura florestal em Mato Grosso — o principal estado impactado pela FICO — era de 80.239.031 hectares. Em 2023, essa rea foi reduzida em 31%, caindo para 55.230.962 hectares, conforme dados da Plataforma MapBiomas. O uso da terra para agropecuria e lavoura no estado tambm aumentou drasticamente, ando de 9.747.376 hectares para 34.715.252 hectares no mesmo perodo, um crescimento superior a 256%.

Entre 1985 e 2023, as nascentes da bacia do rio Xingu perderam 46% de sua superfcie de gua. Em 1985, o volume de gua na regio era de 117 mil hectares, mas, em 2024, era de cerca de 62.735 hectares: uma perda de 54.376 hectares, segundo dados do MapBiomas. Isso significa que, em 38 anos, as reas midas (rios, lagos e outras fontes d’gua) perderam quase metade de seu territrio.

Um dos primeiros moradores e liderana da aldeia Ulupuwene, Yaponuma Waur diz: “Como estamos na fronteira da rea indgena, a gente fica preocupado. Ouvi a histria de que vo trazer a BR-242 e a ferrovia, que vo trazer problemas para ns. Por que esses projetos causam problema? Isso vai acelerar bastante o desmatamento para o nosso territrio e aumentar as reas urbanas nos arredores”.

Para a safra 2023/2024, Mato Grosso plantou mais de 11 milhes de hectares de soja, consolidando-se como o maior produtor nacional, com 25% da produo do pas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).

Nascentes vulnerveis h anos 6p5r3p

No final dos anos 1990, a biloga Rosely Alves Sanches, pesquisadora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), foi convidada pelo Instituto Socioambiental (ISA) para iniciar um dilogo entre os povos indgenas do Xingu e as comunidades ao redor, em cidades de Mato Grosso como Canarana, Querncia e Gacha do Norte. As comunidades indgenas estavam preocupadas com a mudana na qualidade das nascentes e a diminuio dos peixes.

“O ISA tinha um trabalho muito focado para dentro do territrio indgena, mas havia uma demanda por parte de lideranas indgenas naquela poca com a questo das nascentes do Xingu, que ficaram fora durante todo processo de demarcao do Parque Indigena do Xingu”, explicou a pesquisadora.

Assim, comeou no incio dos anos 2000 o projeto Yikatu Xingu, que consistia na construo de um dilogo com o objetivo de proteo das nascentes. Alm de reunir diferentes grupos, como governos municipais, pequenos e grandes agricultores, lideranas indgenas e populao local para discutir aes, o projeto resultou na criao da organizao Sementes do Xingu, que rene coletores de sementes da regio que revendem os produtos da natureza para reflorestamento local. Mas os problemas no deixaram de existir.

Sanches tambm estudou as nascentes do Xingu e sua importncia ambiental. Ela identificou uma floresta adaptada ao clima, com razes profundas que buscam gua no subterrneo. A regio, entre a Amaznia e o Cerrado, possui reas midas essenciais para a produo hdrica e pesqueira, mas essas reas vm se perdendo fora do Parque Indgena do Xingu.

Em 2022, o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema-MT) aprovou a drenagem de reas midas para outros usos, gerando crticas por comprometer a produo de gua e peixes. “Comeou a me chamar ateno que dentro do Parque Xingu, voc v as lagoas, os lagos. Mas fora do Xingu hoje, atualmente, a gente tem observado que cada vez mais essas reas esto desaparecendo”, alerta.

O rio Ulupwene corre dentro da aldeia e, para os Wauja, mercado, banho, brincadeira, vida. O povo teme que o rio seque com a agem da FICO Crdito: Pirat Waur / InfoAmazonia

O cacique e paj da aldeia Ulupuwene, Elewok Waur, foi morar na Terra Indgena Batovi em 2010, junto a seus irmos. Nascido na aldeia Piyulaga, na regio central do territrio Xingu, ele decidiu se mudar quando percebeu que a regio comeou a ser ocupada por no indgenas para fins de pesca, caa e outros. Sua preocupao com o uso de agrotxicos em lavouras prximas s nascentes, mas tambm com a proteo da mata. No trajeto antes de chegar ao Parque do Xingu, est localizada uma rea de cerca de 10 km que pertence reserva legal

A reserva legal a rea dentro de uma propriedade rural que deve ser preservada com vegetao nativa, garantindo o equilbrio ecolgico. Seu percentual varia conforme o bioma, conforme previsto no Cdigo Florestal.
de uma fazenda. Elewok quer que o trecho seja preservado para que o desmatamento no se aproxime mais de seu povo.

da floresta, como conta o cacique, que vem o material com que o povo Wauja faz suas casas e os remdios que ele, como paj, usar na cura dos pacientes, a comida e os trabalhos de arte, como a cermica e a tinta para o grafismo.

“Aqui o ar diferente. o ar limpo. Quando voc sai dentro do territrio para fora, a respirao que voc sente l diferente: voc sente o cheiro do veneno. Estou muito preocupado com o futuro, no sei como vai ser daqui mais para frente. Estou aconselhando os jovens que continuem nesta luta que eu estou fazendo e para no abrir mo para os no indgenas destruir nossa riqueza. como eu falei: daqui a gente tira nossa alegria. Se no tiver natureza, a gente no tem liberdade de alegria”, conta Elewok.

Aqui o ar diferente. o ar limpo. Quando voc sai dentro do territrio para fora, a respirao que voc sente l diferente: voc sente o cheiro do veneno.

cacique e paj da aldeia Ulupuwene, Elewok Waur
Falando em Aruak, sua lngua nativa, o cacique Elewok Waur alertou sobre a vulnerabilidade da aldeia Ulupwene diante da expanso da ocupao no indgena na regio Crdito: Pirat Waur / InfoAmazonia

Infra S.A 705w7

Procurada pela reportagem, a Infra S.A, responsvel pela ferrovia, respondeu por meio de assessoria de imprensa que o licenciamento prvio para toda a extenso da FICO foi obtido junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA), com base em estudos de impacto na rea de influncia do empreendimento. O Instituto foi procurado, mas no respondeu reportagem

“Todos os cursos d’gua localizados na rea de influncia da ferrovia foram objeto de estudos tcnicos que so avaliados pelos rgos ambientais competentes para determinar, na fase de instalao do empreendimento, as medidas pertinentes de proteo e monitoramento. Dentre os programas comumente executados na fase de instalao, esto aes de superviso ambiental das obras, monitoramento de efluentes e recursos hdricos, processos erosivos e aes para recuperao de reas degradadas e de matas ciliares”, afirmam em resposta.

Afirmam ainda que “para as comunidades tradicionais situadas na rea de influncia do empreendimento, so elaborados estudos especficos que avaliam os eventuais impactos e medidas para mitigao e/ou compensao. No caso de povos indgenas, o trabalho supervisionado pela Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai) e no caso de comunidades quilombolas, as atividades so acompanhadas pelo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra).


Esta reportagem foi produzida por jornalistas bolsistas da segunda edio do curso de Jornalismo Investigativo Ambiental e Geojornalismo, oferecido com o apoio da Earth Journalism Network da Internews, e parte do eixo educacional da InfoAmazonia.


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Erika Artmann v6953

Jornalista mato-grossense formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Se interessa por temas como direitos humanos, arqueologia e meio ambiente, entre outros. Recebeu o prmio Intercom...

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