O Brasil acompanhava com apreenso o noticirio internacional naquela quarta-feira de cinzas de 2020. Poucos dias antes, a cidade italiana de Veneza havia cancelado seu tradicional Carnaval como forma de conteno ao avano de um vrus de sndrome respiratria grave desconhecido, inicialmente identificado na China, e que no pas europeu tinha rapidamente vitimado trs pessoas e infectado outras 150.

quela altura, em solo brasileiro, porm, ainda no existia indicativos do desembarque da doena. Isso mudaria no dia 26 de fevereiro, quando foi anunciado que um paciente de 61 anos havia dado entrada no Hospital Albert Einstein, em So Paulo, com sinais compatveis aos da doena. O homem em questo, que tinha ado uma temporada trabalhando na Lombardia, no norte da Itlia, se recuperou bem. A confirmao de seu diagnstico para Covid-19, contudo, foi o estopim para que o Brasil entrasse de vez em uma corrida global capitaneada pela cincia na busca pela cura de uma doena fatal e misteriosa – e que rende frutos at hoje.

Cinco anos depois, especialistas ouvidos pelo GLOBO ressaltam que o legado deixado pela pandemia se difundiu por diferentes reas gerando aes inditas como o desenvolvimento em tempo recorde de vacinas, a otimizao de estudos clnicos e a formao de alianas globais para acompanhar a evoluo da pandemia.

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— A maior contribuio (do perodo de pandemia) foi a gerao de tecnologia, o que natural para emergncias do tipo. Situaes assim congregam pessoas em um plano comum. Naquele momento, o objetivo comum era muito claro, precisvamos de vacinas, remdios e estratgias — afirma a colunista do GLOBO Natlia Pasternak, microbiologista, presidente do IQC (Instituto Questo de Cincia) e professora na Universidade de Columbia (EUA). — Foi uma colaborao indita e global de cientistas, comunicadores e lderes polticos que no poderia ter acontecido fora desse contexto.

RNA MENSAGEIRO

Dentre as inmeras aes mdicas e esforos na pesquisa, possvel afirmar que um dos maiores legados desse perodo foi o uso em larga escala de uma nova gerao de vacinas baseada no chamado RNA mensageiro — plataforma utilizada nos imunizantes das farmacuticas Pfizer e Moderna no Brasil. A tecnologia j era estudada h dcadas, mas na pandemia recebeu investimentos sem precedentes para seu desenvolvimento e, pela primeira vez, foi utilizada em larga escala com resultados bastante positivos.

O grande salto permitido por essa gerao de vacinas, entre outros aspectos, foi a rapidez em seu desenvolvimento. Graas a isso, hoje possvel criar um novo imunizante em menos de um ano e com alta capacidade em gerar resposta protetora no organismo. O trunfo desse tipo de vacina est em seu mecanismo de ao, que transporta para dentro do organismo um tipo de cdigo (o RNA) relacionado doena que se busca prevenir. Desse modo, o organismo pode criar proteo imune contra o agressor externo.

Por sua capacidade de adaptao, possvel que essa nova gerao de imunizantes seja em breve usada para combater diferentes tipos de doenas, como o cncer de pncreas, doena difcil de tratar e para a qual uma candidata vacina j avaliada.

Outros estudos em desenvolvimento levam em conta a combinao de dois vrus capazes de acometer um grande nmero de pessoas de uma s vez a cada ano: justamente a Covid-19 e a gripe. Resultados recentes da candidata vacina que combina a proteo contra as duas infeces, contudo, ainda mostraram que o imunizante teve resultados para Influenza B abaixo do esperado, o que requer ajustes. Ao mesmo tempo, candidatas vacina adaptadas para novas cepas da Covid avanam nos estudos e na aprovao de agncias com menos dificuldade. Em novembro do ano ado, por exemplo, a Anvisa aprovou rapidamente uma vacina adaptada para a subvariante JN.1. da cepa micron, tanto da Pfizer quanto da farmacutica Moderna. Prova de que a Covid-19 segue sob observao e preocupao de especialistas.

— Todas as vezes que surge uma cepa nova, ns testamos junto nossa vacina mais atual. Assim podemos entender se a cobertura do imunizante eficiente. Quando entendemos que uma nova vacina vai ser melhor e oferecer mais proteo, ns comeamos a produo — diz a diretora mdica da Pfizer, Adriana Polycarpo Ribeiro.

Enquanto isso, no Brasil, uma das vacinas candidatas Covid-19 nascidas no pas ainda percorre a fase de bancada para chegar populao. Trata-se de um imunizante nasal em formato spray, inovador no combate ao coronavrus mesmo cinco anos depois e desenvolvido por um grupo comandado pelo imunologista Jorge Kalil, professor titular Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (FMUSP) e diretor do laboratrio de Imunologia do Instituto do Corao (InCor).

— uma proposta totalmente indita. Queremos induzir uma resposta (imune) de mucosa e assim impedir que haja a infeco pelo vrus, interrompendo a transmisso — explica Kalil, que enfrenta desafios para escalar a produo da vacina de maneira industrial.

PESQUISADORES

Sue Ann Costa Clemens, professora e figura central nos estudos da vacina de Oxford no Brasil, ressalta que as alianas globais, como a feita para desenvolver este imunizante amplamente utilizado no pas, demonstraram a importncia de capacitar pesquisadores para que consigam desenvolver estudos de ponta a ponta, da bancada de um laboratrio at o uso da populao, mesmo em pases onde no havia tradio de produzir imunizantes.

— A grande revoluo foi o entendimento de diversos atores desse sistema de desenvolvimento, que vai desde a molcula no laboratrio at a o o da populao, de que a agncia regulatria precisa fazer parte desde o incio. uma coisa que nem sempre acontece (no desenvolvimento de frmacos), mas na Covid-19 aconteceu — diz a pesquisadora. — Antes desse momento, as agncias no tinham um sistema de recepo desse material, de receber o dossi regulatrio de maneira contnua. O material pode ar a ser entregue de maneira progressiva. Foi criado um novo sistema regulatrio a partir disso.

A Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa), por exemplo, adotou a submisso contnua como um mtodo de trabalho que permite a apresentao dos dados de pesquisas clnicas de maneira faseada e progressiva, como explicou Sue Ann. Esse mecanismo neste momento utilizado na troca de informaes entre a Anvisa e o Instituto Butantan no mbito da vacina da dengue, que busca aprovao indita no Brasil.

— A agncia se abriu mais para a possibilidade de que possvel usar procedimentos emergenciais em alguns casos. Houve um legado na comunicao que a Anvisa tem com reguladores (internacionais) ou na prtica de considerar o que outras agncias tm feito internacionalmente. Hoje possvel se aproveitar de anlises e concluses feitas em outros pases para as decises da prpria agncia — diz Gustavo Mendes ex-gerente geral de medicamentos da agncia e atual diretor de regulao, controle de qualidade e estudos clnicos do Instituto Butantan.

Os especialistas ainda observam um outro legado absolutamente positivo deixado pelos duros tempos da Covid-19: o surgimento de especialistas em sade e cientistas cada vez mais conscientes de que preciso orientar a populao a tomar decises seguras, baseadas em evidncias cientficas, em relao prpria sade.

—Existe uma gerao ps-pandemia de jovens cientistas que percebeu a importncia de voc ter uma comunicao efetiva com o pblico e com os tomadores de deciso. Isso abre espao para que a cincia faa parte de novas carreiras, alm do laboratrio — diz Pasternak. — As pessoas perceberam que a falha em comunicar a cincia de maneira efetiva para o pblico ou tomadores de deciso custou muito caro durante a pandemia.

Fonte: O Globo