Em 2021, um animal parecido com um cachorro foi encontrado atropelado numa estrada localizada no municpio de Vacaria, no Rio Grande do Sul.
A fmea foi resgatada ainda com vida pelo bilogo Herbert Hasse Junior, em parceria com a patrulha ambiental da cidade.
Numa primeira anlise, o especialista identificou a vtima do acidente de trnsito como uma espcie silvestre.
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Ela foi encaminhada para o hospital veterinrio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que possui uma equipe especializada em lidar com casos como esse.
E foi a que essa histria ganhou uma primeira reviravolta. Ao retirar o bicho ferido da caixa de transporte, a pesquisadora Flvia Ferrari observou que ele era muito diferente do graxaim-do-campo.
Essa espcie, similar a uma raposa, tem pelagem bege e cinza e endmica da Amrica do Sul, especialmente em reas da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, da Bolvia e da regio sul do Brasil.
Vale destacar que, apesar de ser chamada popularmente de raposa, trata-se de uma espcie diferente.
O animal foi ento transferido para o canil, que trata de espcies domsticas.

Foi a que veio a segunda surpresa. O comportamento desse indivduo no era nada semelhante ao de um cachorro.
Ele se recusou completamente a comer rao, por exemplo.
Os cuidadores, ento, decidiram fazer um experimento e ofereceram pequenos roedores ao candeo misterioso. E ele comeu sem pestanejar — como se espera de um graxaim-do-campo.
Com a descoberta, a vtima de atropelamento foi enviada mais uma vez para o setor de animais silvestres.
A dvida se manteve mesmo quando o geneticista Thales Renato Ochotorena de Freitas, do Instituto de Biocincias da UFRGS, foi convocado a dar um parecer.
A primeira coisa que me chamou a ateno foi a cor da pelagem, que era bastante escura. Ele tambm latia igual a um cachorro. — Thales Renato Ochotorena de Freitas
Sabe-se que os graxains-do-capo emitem um ganido breve e agudo.
Resumindo: o bicho comia como um graxaim-do-campo silvestre, mas latia feito co domstico. Afinal, a qual espcie ele pertencia?
Para responder a essa pergunta de forma definitiva, Freitas escalou outros dois especialistas.
O primeiro deles, o citogeneticista Rafael Kretschmer, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi incubido de vasculhar os cromossomos do animal.
Vale lembrar aqui que os cromossomos so as estruturas que abrigam todo o material gentico de um ser vivo. Eles so herdados diretamente dos genitores — metade da me, metade do pai.
Se o bicho atropelado fosse um cachorro domstico (Canis lupus familiaris), ele teria 78 cromossomos. Agora, caso fosse um graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus), contaria com 74 unidades dessa estrutura.
"Fizemos uma bipsia da pele e uma cultura celular [cultivo de clulas em laboratrio]. Ao fazer a anlise, descobrimos que o animal tinha 76 cromossomos", relata Kretschmer.
O nico candeo que aparece no Rio Grande do Sul com esse nmero de cromossomos o lobo-guar (Chrysocyon brachyurus), mas os cientistas logo descartaram a ideia de o indivduo pertencer a esta espcie pelas prprias caractersticas fsicas dele.
A partir desse trabalho, eles chegaram a uma outra concluso: o animal no era um cachorro ou um graxaim-do-campo, mas, sim, uma mistura das duas coisas.
O nmero inusitado de cromossomos poderia ser explicado pelo cruzamento entre representantes dessas duas espcies. Do cachorro, vieram 39 cromossomos (metade do total). Do graxaim-do-campo, 37.
A combinao dos dois chega exatamente aos 76 cromossomos encontrados pelo laboratrio gacho.
Para confirmar o achado, a biloga Bruna Elenara Szynwelski, da UFRGS, fez uma anlise dos genes do hbrido.
"A primeira coisa que olhamos foi o DNA mitocondrial, que herdado exclusivamente da me" aponta a especialista.
O DNA mitocondrial fica fora do ncleo da clula, separado do restante do DNA, numa estrutura responsvel pela gerao de energia — a mitocndria.
"E foi a que observamos que a linhagem materna desse indivduo era de graxaim-do-campo", informa Szynwelski.
Ao analisar o DNA completo, os pesquisadores descobriram trechos de genes exclusivos dos cachorros, e outros que s aparecem nos graxains-do-campo.
A partir disso, eles puderam concluir definitivamente que a vtima do atropelamento era um hbrido.
Essa foi a primeira vez que esse fenmeno foi descrito em detalhes na Amrica do Sul — h casos semelhantes registrados com outros candeos na frica, na Europa e na Amrica do Norte.
''Os achados, publicados no peridico cientfico Animals no incio de agosto, foram classificados como "raros" e "surpreendentes" pelos envolvidos no trabalho. Afinal, apesar de pertencerem mesma famlia — os candeos — cachorro e graxaim-do-campo so parentes relativamente distantes na rvore evolutiva.
Aps a recuperao das leses do atropelamento, o candeo foi castrado e enviado ao Mantenedouro So Braz, um santurio e zoolgico sediado em Santa Maria, tambm em terras gachas.
"E h uma possvel troca de doenas entre espcies. Os cachorros domsticos podem ar certas condies para animais selvagens e isso virar um problema srio", antev Freitas.

Fotos: Reproduo
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"Quando a gente pensa na conservao de espcies, precisamos fazer projees a longo prazo. E agora vamos explorar e estudar todas essas questes daqui em diante", conclui Szynwelski.
Fonte: G1