.jpg) Em 17 de maro de 2014, os brasileiros foram apresentados Lava-Jato. Inicialmente focada numa rede de doleiros, ela viria a se tornar a maior operao de combate corrupo no pas. Anos antes, em maio de 2005, dois policiais civis se reuniam num restaurante em Aparecida do Norte, no interior de So Paulo, para extorquir guias que organizavam viagens ao Paraguai com o objetivo de trazer muamba. Embora bem diferentes, tanto no porte como na repercusso que tiveram, as duas investigaes tm algo em comum. Ambas podero ser afetadas por um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), ainda sem data marcada, que discutir a validade de escutas telefnicas com durao superior a 30 dias, mesmo quando autorizadas pela Justia.
A Lava-Jato se tornou pblica em 2014, mas comeou bem antes. Em 11 de julho de 2013, o juiz Srgio Moro autorizou a Polcia Federal (PF) a fazer interceptao em linhas telefnicas de Carlos Habib Chater — doleiro e dono de um posto de gasolina em Braslia — e de outras pessoas ligadas a ele. As escutas foram renovadas vrias vezes at 17 de maro do ano seguinte, quando a operao foi finalmente deflagrada e agentes da PF foram s ruas prender 28 pessoas, entre elas o doleiro Alberto Yousseff. Em 20 de outubro de 2014, Moro deu sua primeira sentena, condenando Chater a cinco anos e seis meses de priso, e outras pessoas a penas que chegaram a 14 anos. No processo, a defesa alegou, entre outras coisas, que as escutas eram ilegais justamente porque duraram mais de 30 dias. J naquela sentena, Moro refutou o argumento, citando inclusive decises do STF que autorizam grampos por tempo superior.
“O prprio Supremo Tribunal Federal, em caso de sua competncia originria, no qual a interceptao telefnica durou sete meses, reafirmou, por maioria, com apenas um voto vencido, sua jurisprudncia no sentido de que a interceptao telefnica pode ser prorrogada reiteradas vezes quando necessrio”, escreveu Moro na poca. O caso citado por ele o da Operao Furaco, cujos grampos se estenderam entre 2006 e 2007. Isso permitiu desbaratar uma organizao criminosa composta por bicheiros do Rio de Janeiro, acusados de uma gama de crimes: corrupo de agentes pblicos, trfico de influncia, lavagem de dinheiro, sonegao fiscal e contrabando. Para viabilizar suas atividades, a quadrilha corrompia integrantes do Judicirio, incluindo at um ex-ministro do Superior Tribunal de Justia (STJ), suspeitos de vender decises.

Liminar suspende julgamento de bicheiros
Os bicheiros foram condenados na primeira instncia e estavam prestes a serem julgados pelo Tribunal Regional Federal da 2 Regio. Caso condenados novamente, j poderiam ser presos. Por envolver um ministro do STJ, que j deixou o cargo em razo da operao, a prorrogao das escutas da Furaco foram autorizadas pelo prprio STF. Mas, conforme revelado pelo GLOBO no ms ado, uma liminar do ministro Marco Aurlio Mello, do STF, suspendeu o julgamento at que o tribunal discuta a validade das escutas telefnicas que durem mais de 30 dias.
Quem contrrio a esses grampos costuma citar uma lei de 1996, segundo a qual a interceptao pode durar 15 dias, prorrogveis por mais 15.Mas uma resoluo do Conselho Nacional de Justia (CNJ), de 2008, e decises da prpria Justia, inclusive do STF, permitiram escutas por mais tempo. No mesmo ano de 2008, porm, a Sexta Turma do STJ anulou dois anos de interceptao da Operao Pr do Sol, que investigou o Grupo Sundown por operaes fraudulentas de importao e sonegao. Os ministros do STJ entenderam que houve prorrogao sem justificativa razovel e uma devassa privacidade. O Ministrio Pblico Federal recorreu ao STF e o caso ganhou repercusso geral, ou seja, o que for decidido dever ser replicado por outros tribunais e juzes. O relator o ministro Gilmar Mendes. Curiosamente, as escutas neste caso foram autorizadas por Moro.
Segundo o advogado Antnio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que defende um dos rus da Pr do Sol, a inteno dele no limitar a validade das escutas a 30 dias. Ele quer que cada prorrogao seja fundamentada e “compatvel com a gravidade do crime”. Para Kakay, o julgamento no STF no vai influenciar a Lava-Jato, na qual tambm tem clientes.
— uma mentira deslavada dizer que isso vai atingir a Lava-Jato. Isso uma mentira para pressionar o julgamento. O caso que eu defendo foram 48 prorrogaes. E com uma caracterstica forte: nos primeiros seis meses a polcia dizia que no havia indcios. Ns defendemos que tem de se avaliar caso a caso. Se for grave, se for crime organizado, se tiver muito indcio, prorroga-se. Mas a regra no pode ser a prorrogao — disse Kakay, acrescentando: — Mas nada justifica dois anos de escutas telefnicas. Se existem elementos para renovar escutas, o Estado tem que interferir na organizao criminosa. Se no, estar sendo leniente.
Representante do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que atua no processo relatado por Gilmar, o advogado criminalista Roberto Soares Garcia mais radical que Kakay:
— Trinta dias, e mais nada. De fato, quinze dias ou trinta podem no ser suficientes para o monitoramento de criminosos sofisticados, mas a lei estabelece o limite de 30 dias. No est entre as atribuies da Suprema Corte alterar o disposto com clareza pela legislao.
O presidente da Associao Nacional dos Procuradores da Repblica (ANPR), Jos Robalinho, discorda da avaliao de Kakay. Segundo ele, as fases iniciais da Lava-Jato podero ser anuladas, caso o entendimento do STF seja alterado:
— Eu no acredito que a Lava-Jato casse toda. Alm dessa vertente (dos grampos), outras apareceram. Mas essa vertente seria derrubada e outras poderiam cair adiante. O fato que ns no sabemos o tamanho do que seria prejudicado.
Na avaliao do presidente da ANPR, “centenas de investigaes cairiam” com prazos pr-fixados:
— Seria uma medida danosa, um retrocesso no sistema jurdico do pas e no combate ao crime organizado. Voc no trata crimes diferentes da mesma forma. algo que enfraquece o sistema como um todo e favorece a impunidade.
Defesa da privacidade
Alm das grandes operaes, outras, menores, tambm usaram grampos por mais de 30 dias. S no STF, chegaram trs casos de quadrilhas de traficantes de drogas. Uma delas atuava no Centro-Oeste e teve seus telefones monitorados por seis meses entre 2009 e 2010 pela Polcia Civil do DF. Na cidade mineira de Ponte Nova, uma organizao criminosa foi monitorada por mais de 30 dias. Integrantes dessas quadrilhas foram condenados em primeira instncia e recorreram, alegando entre outras coisas, a nulidade das interceptaes telefnicas. O julgamento dos recursos est espera de uma definio da validade das escutas.
Outros dois casos, envolvendo policiais, tambm chegaram ao STF, mas se encontram igualmente suspensos. Um deles a Operao adio, em que policiais rodovirios federais cobravam propina para no abordar caminhoneiros nas estradas de Sergipe. As escutas duraram oito meses entre 2007 e 2008. No outro caso, policiais civis paulistas foram monitorados entre 2005 e 2006. Eles cobravam R$ 1.500 mensais de guias que organizavam viagens para o Paraguai.
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Carlos Lamachia, evitou defender uma limitao para interceptaes telefnicas nas investigaes, mas ressaltou que “no se combate um crime com outro crime".
— Hoje ns quase que temos uma regra: as investigaes iniciam pelo grampo. E isso no uma coisa boa para a democracia. A regra deve ser a privacidade da pessoa. A exceo devem ser as interceptaes com fundada autorizao judicial, e que no seja o incio de qualquer investigao — afirmou o presidente da OAB.
O ex-procurador-geral da Repblica Roberto Gurgel, que atuou no julgamento do mensalo, defendeu que no haja prazo fixo para os grampos. — Trar prejuzos para as investigaes. claro que como qualquer medida invasiva, as escutas telefnicas devem ser autorizadas de modo limitado. Mas no se pode de antemo fixar um prazo porque muitas vezes esse prazo ser insuficiente para que se apure algo til investigao. Eu acho que o prazo deve ser renovado enquanto o Ministrio Pblico demonstrar a necessidade de isso continuar a ser feito.
Fonte: O Globo
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