Coluna Voc Sabia? : Do picadeiro ao cinema: a histria de Benjamim de Oliveira, o palhao negro do Brasil
Enviado por alexandre em 15/02/2023 10:00:54

Numa manh de 1889, Antnio Freitas, o palhao Freitinhas, acordou doente. Sem condies de apresentar seu nmero, teve que ser substitudo. Um dos donos do circo, Albano Pereira, no pensou duas vezes. Diante da desistncia de outros possveis candidatos, que preferiram pedir demisso a serem escolhidos para fazer graa, declarou: "J sei! O moleque Benjamim vai fazer o palhao!".

O tal Benjamim, coitado, tremeu da cabea aos ps. "Se no fosse preto, teria ficado plido", recordou, em entrevista ao livro Esses Populares To Desconhecidos (Raposo Carneiro, 1963), do jornalista Brcio de Abreu (1903-1970).O jovem Benja, como era chamado, ainda tentou convencer Frutuoso, o scio da companhia, de que no era a escolha certa para arrancar gargalhadas do pblico. De nada adiantou. Logo em sua primeira noite como palhao, recebeu vaias e assobios. Na noite seguinte, foram ovos e batatas...

"No foi vaiado porque era negro. Foi vaiado porque era sem graa!", revela Ermnia Silva, doutora em Histria Social da Cultura pela Universidade de Campinas (Unicamp) e autora dos livros Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil (Atlanta, 2007) e Respeitvel Pblico... O Circo em Cena (Funarte, 2009).

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"Hoje em dia, cada artista tem um nmero especfico, mas, naquele tempo, todo mundo fazia de tudo. De noite, ganhava o aplauso do pblico, mas, de dia, limpava bosta do cavalo. No havia privilgios".

CIRCO DE HORRORES


Benjamim de Oliveira, nome artstico de Benjamim Chaves, nasceu em 11 de junho de 1870, em uma fazenda de Par de Minas, a Fazenda dos Guardas, a 86 quilmetros de Belo Horizonte (MG).

Era o quarto filho de um capito do mato, Malaquias Chaves, com uma escrava domstica, Leandra de Jesus. Ao todo, o casal teve nove filhos, "todos alforriados ao nascer", segundo o prprio Benjamim.

Sua infncia, de engraada, no teve nada: levava surra do pai "quase que diariamente". Tantas que, quando tinha 12 anos, resolveu fugir com o primeiro circo que apareceu: o Sotero.

Bem, circo fora de expresso. O Sotero era, na verdade, uma pequena caravana de artistas que se locomovia pelo interior de Minas em carroas e carros de boi.


L, aprendeu seus primeiros nmeros de trapzio e acrobacia, e permaneceu por quase trs anos. Mas, como o dono do circo, Sotero Ricardo Ferreira Villela, tambm lhe batia, fugiu de novo.

Chegou a viver com uma trupe de ciganos liderada por um velhote chamado Marcos. Um de seus filhos, Trajano, decidiu vender Benjamim como escravo ou, ento, troc-lo por um cavalo. Foi salvo por Jandira, filha de Marcos e irm de Trajano, que contou tudo a Benjamim.

Com pena do rapaz, a cigana bolou um plano para salv-lo. Quando tossisse duas vezes, era sinal de que o pai e o irmo estavam dormindo. Nisso, Benjamim conseguiu escapar.

At ser contratado por Frutuoso e, finalmente, estrear como palhao, Benjamim de Oliveira ou por altos e baixos. Mais baixos do que altos. Foi preso algumas vezes. E precisou escapar outras tantas. Numa delas, foi capturado por um fazendeiro que achou que ele tivesse fugido de alguma senzala. Para provar que no era escravo, improvisou um nmero de acrobacia. Deu certo.

O sobrenome de Benjamim era Chaves, o mesmo de seu pai. O Oliveira uma homenagem que prestou a Severino de Oliveira, artista circense que lhe ensinou boa parte de seus nmeros circenses.

O PALHAO E O MARECHAL


Benjamim de Oliveira no o primeiro palhao negro do Brasil. Houve outros antes dele. Como Eduardo Sebastio das Neves (1874-1919), o Diamante Negro. E depois tambm.

Mas, foi, certamente, um dos mais versteis: soltava a voz, tocava instrumentos, sabia dar saltos, cambalhotas e piruetas e, ainda, danava maxixe, lundu e modinhas, entre outros ritmos.

Por essas e outras, comeou a receber cartas, convites e telegramas para trabalhar em outros circos. Em 1890, foi contratado pela companhia de Antnio Amaral por um salrio inicial de 4 mil ris por dia. Em apenas dois anos, j ganhava quase oito vezes mais: 30 mil ris por dia.

Benjamim de Oliveira no parava quieto em um mesmo circo por muito tempo. Logo, se transferiu para a companhia de Manuel Gomes, o Comendador Caamba.

Em setembro de 1893, depois de uma apresentao em Cascadura, subrbio do Rio, o Comendador Caamba recebeu a visita de um espectador que, entre outros elogios, enalteceu o nmero do palhao e, em seguida, lhe deu uma nota de 5 mil ris. O dono do circo ficou to agradecido com a doao que, no calor da emoo, nem reconheceu o presidente Floriano Peixoto (1839-1895).


Uma curiosidade: o caula do "Marechal de Ferro", Jos Floriano Peixoto Filho, depois de se apaixonar por uma bela trapezista, tambm fugiu com o circo. Mais que isso. Entre 1915 e 1940, Zeca Floriano chegou a dirigir o prprio circo, o Pavilho Floriano. Benjamim se apresentou l, com seu violo, no dia 27 de julho de 1921.

Em pouco tempo, Benjamim de Oliveira conquistou outros iradores famosos: do escritor Artur Azevedo (1855-1908), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL); ao ator Procpio Ferreira (1898-1979), um dos grandes nomes do teatro brasileiro, que o apelidou de "Mestre de Geraes".

Como dramaturgo, Benjamim escreveu peas, como O Colar Perdido, O Punhal de Ouro e Os Bandidos da Rocha Negra, e adaptou outras, como A Viva Alegre, do compositor austraco Franz Lehr (1870-1948).

" princpio, Artur Azevedo no aceitava a participao de artistas circenses em produes teatrais. Dizia que o teatro estava sendo invadido por saltimbancos. No entanto, se rendeu ao talento de Benjamim e elogiou sua atuao", explica o pesquisador Daniel Lopes, doutor em Educao pela Universidade de So Paulo (USP) e coordenador do portal Circontedo

O Portal da Diversidade Circense.Por volta de 1896, quando estava em Ribeiro Preto (SP), conheceu e se apaixonou por Victria Maia, a filha de um lavadeira. Os dois se casaram em 1914.

MUITO ALM DO PICADEIRO


Benjamim de Oliveira morreu em 3 de maio de 1954, aos 84 anos. "Quase na penria", escreveu o escritor e acadmico Antnio Torres em O Circo no Brasil (Funarte, 1998).

A historiadora Ermnia Silva rebate essa informao. "Benjamin de Oliveira no morreu na misria. Morreu na casa da filha, onde era muito bem tratado. um equvoco achar que todo artista tem que morrer na misria", protesta.

Ermnia Silva, alis, da quarta gerao de uma famlia circense. Seu pai, Barry Charles Silva (1931-2012), foi domador, palhao e trapezista. "ava minhas frias escolares sob a lona do circo", recorda.

A primeira vez que Ermnia ouviu falar de Benjamin de Oliveira foi durante sua pesquisa de mestrado.

"No saberia dizer se o fato de ele ser negro contribuiu para seu esquecimento. Acredito que o fato de ser circense pesou mais. Sempre houve preconceito e discriminao. noite, os artistas lotavam o circo. Mas, de dia, eram vistos como vagabundos e prostitutas. Fugir com o circo, alis, era sinnimo de viver em liberdade. Isso criou a falsa ideia de que artista de circo no trabalha".

Foram muitas as viagens at Par de Minas — a primeira delas em 2000. Na terra natal de Benjamim de Oliveira, Ermnia conheceu e fez amizade com Jaanan Cardoso Gonalves e Juyraaba Santos Cardoso, netos do palhao, e Jaciara Gonalves de Andrade, sua bisneta.

No satisfeita, ainda pesquisou em jornais e revistas de poca, desde 1870, quando Benjamim de Oliveira nasceu, at 1954, data de sua morte.

Sua tese de doutorado, As Mltiplas Linguagens na Teatralidade Circense — Benjamim de Oliveira e o Circo-Teatro no Brasil, No Final do Sculo XIX e Incio do XX, virou livro, Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil, lanado originalmente pela Editora Atlanta em 2007 e relanado em 2022 pela Martins Fontes.

"O Benjamim de Oliveira foi muito alm do picadeiro. Gravou discos, escreveu peas, atuou em filmes... At organizar um campeonato de capoeira em 1913, quando era proibida por lei, ele organizou", explica Ermnia.

"Quanto questo racial, Benjamim no levantava bandeiras, mas era um ativista. Chegou a montar um espetculo em homenagem a Joo Cndido, o Almirante Negro."

O MAIOR ESPETCULO DA TERRA


As homenagens ao "maior palhao do Brasil", como descreveu um jornal da poca em seu obiturio, no pararam por a. Benjamim de Oliveira j foi tema de dois desfiles de escola de samba: O Beijo Moleque da So Clemente, do carnavalesco Mauro Quintaes, em 2009, e O Rei Negro do Picadeiro, do carnavalesco Alex de Souza, em 2020.

A So Clemente terminou o desfile em quarto lugar e a Acadmicos do Salgueiro, em quinto.

O ttulo do samba-enredo da So Clemente, alis, se refere a um de seus muitos apelidos: "Moleque Beijo".

Depois de ser representado no desfile do Salgueiro pelos atores Alton Graa e Nando Cunha e pelo humorista Hlio de La Pea, Benjamim de Oliveira dever ser interpretado no cinema por Leandro Firmino.

Famoso por dar vida ao bandido Z Pequeno no filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o ator o mais cotado para protagonizar o longa-metragem de Lus Lomenha.


Ainda no h previso de estreia, mas o roteiro j est quase pronto. O ttulo provisrio Mister Benjamim.

"Ns, negros, nascemos livres. Mas, no sabemos se continuaremos livres at o fim de nossas vidas. Temos visto, pelo Brasil afora, exemplos assustadores de trabalho escravo: na lavoura, garimpo, futebol…", adianta o diretor Lus Lomenha que est desenvolvendo o roteiro em parceria com Igor Verde e Bruna Maciel e pretende adapt-lo aos dias de hoje.

"Mais do que um palhao, foi um empreendedor. Revolucionou o jeito de fazer circo no Brasil."

Entre outras homenagens, o mais importante palhao negro do Brasil ganhou livro infantojuvenil, Benjamim, o Filho da Felicidade (FTD, 2007), escrito por Helosa Pires Lima; esttua em sua cidade natal, esculpida pelo artista plstico Alexandre Pinto; e exposio cultural, a Ocupao Benjamim de Oliveira, organizada pelo Ita Cultural, que reuniu 120 peas, entre fotos, vdeos e documentos.

"Quando morreu, Benjamim de Oliveira no estava na misria ou em situao precria. Romantizam muito a morte dele. No entanto, morreu sem o reconhecimento que merecia. Pela importncia que teve, morreu no esquecimento. Precisamos dar mais valor aos artistas de circo", afirma o pesquisador Daniel Lopes.

Fonte: Terra

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