
Um siri em necropsia 1w2b1x
Data31/08/2011 10:04:23 | Topico:Polcia E Sociedade
| Um siri em necropsia Temos de convir que a funo de criticar ou elogiar no tarefa fcil pois s vezes nos esbarramos em nossos prprios conceitos contrrios que podem no ser os conceitos verdadeiros, no entanto, esses dois entendimentos podem estar presentes nas mesmas aes de uma s pessoa. No podemos esquecer de que o gosto de cada um algo muito subjetivo e pessoal. Assim, o gosto que algum considera ruim e errado, para o outro considerado bom e certo. Tudo depende do ponto de vista de cada um e do mundo em que cada um vive. por isso que se diz que h gosto para todas as coisas, que h gosto para tudo e a cada um seu gosto lhe parece o melhor e, em assim sendo, dentro dessa filosofia que o presente texto no faz crtica ou elogio ao gosto do personagem principal, vez que contra o gosto no h argumento. H muito tempo atrs, mais de perto, no ano de 1985 conheci quando do meu ingresso na Polcia Civil de Sergipe, um cidado que arei a partir de ento a chama-lo com o nome fictcio de Matusalm, pois os seus familiares podem no gostar da histria apesar de ter sido a pura verdade do que realmente aconteceu. Matusalm era um funcionrio pblico exemplar, um excelente profissional, um dedicado e exclusivo, jamais igualado agente auxiliar de necropsia que trabalhava no Instituto Mdico Legal de Aracaju. Trabalhava j ento por sua livre e espontnea vontade, vez que as duas possibilidades de aposentadoria haviam alcanado o seu perodo laborativo, ou seja, tanto por tempo de servio, quanto por idade, o referido diferente e irreverente servidor podia ir embora descansar na sua cadeira de balano, contudo, no havia quem colocasse isso na cabea dele, ando ento o mesmo a ser considerado um patrimnio da casa, um patrimnio vivo e exemplar do IML do nosso Estado de Sergipe. O IML no era somente o seu trabalho, era a sua casa, seu lar, sua vida. Para Matusalm a sua simples e difcil funo era a melhor de todas as outras existentes. Cortar cadveres, procurar projeteis ou objetos em suas vsceras, mexer em corpos putrefatos, buscar mortos mutilados em acidentes, ver sangue, sentir sangue, sentir o cheiro forte do formol, do morto e da morte era para o bom velho Matusalm uma satisfao incomum que ele realizava sem luvas, sem mscaras ou qualquer tipo de proteo possvel. Praticamente Matusalm trabalhava todos os dias em todos os plantes porque aceitava qualquer coisa em troca, por vezes at algumas doses de cachaa, para cobrir o expediente dos seus colegas. Corria o boato que quase sempre Matusalm fazia as suas refeies no seu prprio local de trabalho, mais de perto, almoava, lanchava ou jantava na mesma sala em que os mortos estavam sendo submetidos aos exames cadavricos e, at colocava a gua que bebia, suco ou qualquer alimento para gelar nas geladeiras em que tambm se guardavam os defuntos. O meu primeiro local de trabalho foi a extinta Delegacia Central de Aracaju que era localizada no prdio vizinho ao IML, por isso a minha aproximao com os funcionrios daquele Instituto, mais de perto com o velho Matusalm a quem melhor me apeguei pela sua simples filosofia de vida, apesar das nossas extremas diferenas. Calouro na Polcia e metido a ser o melhor de todos, no diferente dos jovens policiais que se acham superiores aos antigos, aos mais experientes, ento nas minhas horas vagas ou de menor movimento na Delegacia, no s pela curiosidade, mas principalmente para me acostumar com a situao fnebre e horrorosa que tanto me causava nuseas e que eu achava ser condizente com a minha carreira, ento ei a visitar a sala de necropsia do IML para assistir ao trabalho efetuado pelos Mdicos Legistas, na maioria das vezes com o auxilio de Matusalm, que para dizer a verdade era quem fazia todo o trabalho pesado de cortar, serrar, abrir, retirar o crebro ou as vsceras do examinado em busca das evidencias das suas mortes. Certo dia ca na besteira de entrar na sala quando da chegada de um defunto afogado que fora achado na praia de Atalaia em avanado estado de decomposio, j bastante mutilado e at largando aos pedaos. Era o meu desafio maior, meu teste de fogo, para me acostumar de vez com a situao devido as tantas outras diferentes anteriormente a que me submeti voluntariamente assistindo a exames de todos os tipos de mortes possveis. Ali mesmo constatei em meio a uma fedentina invel, a pele podre das pernas do defunto ficar grudada nas mos nuas de Matusalm, contudo, tal fato era s o comeo do esdruxulo, pois o pior estava por vir: No demorou muito e caiu no cho da sala um grande siri, um siri que a gente aqui em Sergipe chama de siri patola. O siri que veio dentro da barriga do inchado e deteriorado cadver afogado, agora estava ali no cho sujo da sala, em lquido gosmento rseo-avermelhado, desorientado e armado com as suas duas pus tais quais tesouras apontadas para o alto no sentido de se defender de um possvel ataque e, para minha surpresa escuto Matusalm dizer: - Chegou o meu tira-gosto!... Sa rpido da sala para vomitar l fora e voltar para a Delegacia acreditando ser brincadeira aquela frase do meu amigo Matusalm. Momento depois me chega o velho Matusalm j com o siri cozinhado, todo vermelho e, cantando vantagem: - E a doutor, vai encarar?... - Voc est ficando doido Matusalm... Jogue essa porcaria fora!... Onde j se viu querer comer um siri que estava dentro da barriga de um defunto e ainda mais podre e nojento?... - E qual a diferena de se comer ele ou de comer qualquer outro siri?... Ser que o outro que o senhor pesca ou compra na feira, tambm no comeu defunto?... - Vamos ponderar um pouco Matusalm... Isso que voc quer fazer, alm de absurdo, anti-higinico e nojento deprimente, eu pago outro tira-gosto qualquer para voc, mas jogue esse siri no lixo. - Anti-higinico no , porque quando se cozinha, mata-se todos os micrbios. Nojento aquilo que o senhor come sem saber de onde veio. Deprimente o senhor comer algo pensando que bom, quando na verdade esta sendo enganado, est comendo algo ruim, que no vale nada, que pode lhe fazer mal... Por exemplo: O senhor compra no mercado a carne mais cara que existe, o fil, entretanto esse fil pode vir de uma vaca que morreu de uma doena braba ou de uma picada de cobra... E a?... Eu no quero que o senhor me pague nenhum tira-gosto no doutor por eu j tenho o meu... S quero que me pague duas doses de cachaa que pra eu comer o meu siri... - Se isso mesmo que voc quer Matusalm, ento seja feita a sua vontade... Pode ir andando pra birosca que eu chego j pra pagar a sua cachaa... E ainda meio incrdulo, cerca de vinte minutos depois fui at o barzinho da esquina e l chegando constatei os cascos e restos do siri dentro de um prato em cima da mesa, e Matusalm sentado ao lado se gabando: - S estava esperando o senhor para me pagar tambm a saideira, doutor... O siri estava gordo que estava uma beleza!... Daquele dia em diante no mais comi um siri sequer e toda vez que eu vejo um, me lembro do meu amigo Matusalm, uma pessoa simples, leal, verdadeira e trabalhadora que viveu um mundo estranho dentro desse estranho mundo com o entendimento e gosto peculiar que era s seu. O velho Matusalm morreu alguns anos depois dentro do seu prprio local de trabalho. Dormiu e no mais acordou... Morreu no seu paraso, na morte que pediu a Deus... Morreu to pobre quanto nasceu, mas me deixou uma lio: Vivemos em um mundo em que cada um vive o seu mundo, apenas nos adequamos s regras e ao mundo dos outros. (Autor: Archimedes Marques. Delegado de Polcia no Estado de Sergipe. Ps-Graduado em Gesto Estratgica em Segurana Pblica pela UFS. [email protected])
Um siri em necropsia Temos de convir que a funo de criticar ou elogiar no tarefa fcil pois s vezes nos esbarramos em nossos prprios conceitos contrrios que podem no ser os conceitos verdadeiros, no entanto, esses dois entendimentos podem estar presentes nas mesmas aes de uma s pessoa. No podemos esquecer de que o gosto de cada um algo muito subjetivo e pessoal. Assim, o gosto que algum considera ruim e errado, para o outro considerado bom e certo. Tudo depende do ponto de vista de cada um e do mundo em que cada um vive. por isso que se diz que h gosto para todas as coisas, que h gosto para tudo e a cada um seu gosto lhe parece o melhor e, em assim sendo, dentro dessa filosofia que o presente texto no faz crtica ou elogio ao gosto do personagem principal, vez que contra o gosto no h argumento. H muito tempo atrs, mais de perto, no ano de 1985 conheci quando do meu ingresso na Polcia Civil de Sergipe, um cidado que arei a partir de ento a chama-lo com o nome fictcio de Matusalm, pois os seus familiares podem no gostar da histria apesar de ter sido a pura verdade do que realmente aconteceu. Matusalm era um funcionrio pblico exemplar, um excelente profissional, um dedicado e exclusivo, jamais igualado agente auxiliar de necropsia que trabalhava no Instituto Mdico Legal de Aracaju. Trabalhava j ento por sua livre e espontnea vontade, vez que as duas possibilidades de aposentadoria haviam alcanado o seu perodo laborativo, ou seja, tanto por tempo de servio, quanto por idade, o referido diferente e irreverente servidor podia ir embora descansar na sua cadeira de balano, contudo, no havia quem colocasse isso na cabea dele, ando ento o mesmo a ser considerado um patrimnio da casa, um patrimnio vivo e exemplar do IML do nosso Estado de Sergipe. O IML no era somente o seu trabalho, era a sua casa, seu lar, sua vida. Para Matusalm a sua simples e difcil funo era a melhor de todas as outras existentes. Cortar cadveres, procurar projeteis ou objetos em suas vsceras, mexer em corpos putrefatos, buscar mortos mutilados em acidentes, ver sangue, sentir sangue, sentir o cheiro forte do formol, do morto e da morte era para o bom velho Matusalm uma satisfao incomum que ele realizava sem luvas, sem mscaras ou qualquer tipo de proteo possvel. Praticamente Matusalm trabalhava todos os dias em todos os plantes porque aceitava qualquer coisa em troca, por vezes at algumas doses de cachaa, para cobrir o expediente dos seus colegas. Corria o boato que quase sempre Matusalm fazia as suas refeies no seu prprio local de trabalho, mais de perto, almoava, lanchava ou jantava na mesma sala em que os mortos estavam sendo submetidos aos exames cadavricos e, at colocava a gua que bebia, suco ou qualquer alimento para gelar nas geladeiras em que tambm se guardavam os defuntos. O meu primeiro local de trabalho foi a extinta Delegacia Central de Aracaju que era localizada no prdio vizinho ao IML, por isso a minha aproximao com os funcionrios daquele Instituto, mais de perto com o velho Matusalm a quem melhor me apeguei pela sua simples filosofia de vida, apesar das nossas extremas diferenas. Calouro na Polcia e metido a ser o melhor de todos, no diferente dos jovens policiais que se acham superiores aos antigos, aos mais experientes, ento nas minhas horas vagas ou de menor movimento na Delegacia, no s pela curiosidade, mas principalmente para me acostumar com a situao fnebre e horrorosa que tanto me causava nuseas e que eu achava ser condizente com a minha carreira, ento ei a visitar a sala de necropsia do IML para assistir ao trabalho efetuado pelos Mdicos Legistas, na maioria das vezes com o auxilio de Matusalm, que para dizer a verdade era quem fazia todo o trabalho pesado de cortar, serrar, abrir, retirar o crebro ou as vsceras do examinado em busca das evidencias das suas mortes. Certo dia ca na besteira de entrar na sala quando da chegada de um defunto afogado que fora achado na praia de Atalaia em avanado estado de decomposio, j bastante mutilado e at largando aos pedaos. Era o meu desafio maior, meu teste de fogo, para me acostumar de vez com a situao devido as tantas outras diferentes anteriormente a que me submeti voluntariamente assistindo a exames de todos os tipos de mortes possveis. Ali mesmo constatei em meio a uma fedentina invel, a pele podre das pernas do defunto ficar grudada nas mos nuas de Matusalm, contudo, tal fato era s o comeo do esdruxulo, pois o pior estava por vir: No demorou muito e caiu no cho da sala um grande siri, um siri que a gente aqui em Sergipe chama de siri patola. O siri que veio dentro da barriga do inchado e deteriorado cadver afogado, agora estava ali no cho sujo da sala, em lquido gosmento rseo-avermelhado, desorientado e armado com as suas duas pus tais quais tesouras apontadas para o alto no sentido de se defender de um possvel ataque e, para minha surpresa escuto Matusalm dizer: - Chegou o meu tira-gosto!... Sa rpido da sala para vomitar l fora e voltar para a Delegacia acreditando ser brincadeira aquela frase do meu amigo Matusalm. Momento depois me chega o velho Matusalm j com o siri cozinhado, todo vermelho e, cantando vantagem: - E a doutor, vai encarar?... - Voc est ficando doido Matusalm... Jogue essa porcaria fora!... Onde j se viu querer comer um siri que estava dentro da barriga de um defunto e ainda mais podre e nojento?... - E qual a diferena de se comer ele ou de comer qualquer outro siri?... Ser que o outro que o senhor pesca ou compra na feira, tambm no comeu defunto?... - Vamos ponderar um pouco Matusalm... Isso que voc quer fazer, alm de absurdo, anti-higinico e nojento deprimente, eu pago outro tira-gosto qualquer para voc, mas jogue esse siri no lixo. - Anti-higinico no , porque quando se cozinha, mata-se todos os micrbios. Nojento aquilo que o senhor come sem saber de onde veio. Deprimente o senhor comer algo pensando que bom, quando na verdade esta sendo enganado, est comendo algo ruim, que no vale nada, que pode lhe fazer mal... Por exemplo: O senhor compra no mercado a carne mais cara que existe, o fil, entretanto esse fil pode vir de uma vaca que morreu de uma doena braba ou de uma picada de cobra... E a?... Eu no quero que o senhor me pague nenhum tira-gosto no doutor por eu j tenho o meu... S quero que me pague duas doses de cachaa que pra eu comer o meu siri... - Se isso mesmo que voc quer Matusalm, ento seja feita a sua vontade... Pode ir andando pra birosca que eu chego j pra pagar a sua cachaa... E ainda meio incrdulo, cerca de vinte minutos depois fui at o barzinho da esquina e l chegando constatei os cascos e restos do siri dentro de um prato em cima da mesa, e Matusalm sentado ao lado se gabando: - S estava esperando o senhor para me pagar tambm a saideira, doutor... O siri estava gordo que estava uma beleza!... Daquele dia em diante no mais comi um siri sequer e toda vez que eu vejo um, me lembro do meu amigo Matusalm, uma pessoa simples, leal, verdadeira e trabalhadora que viveu um mundo estranho dentro desse estranho mundo com o entendimento e gosto peculiar que era s seu. O velho Matusalm morreu alguns anos depois dentro do seu prprio local de trabalho. Dormiu e no mais acordou... Morreu no seu paraso, na morte que pediu a Deus... Morreu to pobre quanto nasceu, mas me deixou uma lio: Vivemos em um mundo em que cada um vive o seu mundo, apenas nos adequamos s regras e ao mundo dos outros. (Autor: Archimedes Marques. Delegado de Polcia no Estado de Sergipe. Ps-Graduado em Gesto Estratgica em Segurana Pblica pela UFS. [email protected])
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