Moradores que vivem ao longo da rodovia apoiam projeto na esperana de ter mais o a mdicos, enquanto que cientistas ampliam pesquisas que alertam para aumento na disseminao de doenas infecciosas em razo do desmatamento. 2j3l3f

Data11/03/2025 00:31:13 | Topico:Brasil

Igap-Au uma comunidade no interior do Amazonas onde vivem 75 famlias beira da rodovia BR-319, uma das regies com maior biodiversidade na Amaznia. Ali, eles esto a duas horas de carro do mdico mais prximo, mas a poucos os da estrada que caso seja asfaltada pode desencadear uma srie de doenas infecciosas em razo do desmatamento. 436j1r

A InfoAmazonia visitou a regio em dezembro do ano ado com pesquisadores e profissionais de sade da Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A viagem foi parte de um projeto de longo prazo no qual as duas instituies investigam a presena de doenas infecciosas e tambm oferecem atendimentos mdicos s pessoas que vivem ao longo da BR-319. A rodovia conecta Manaus, capital do Amazonas, a Porto Velho, capital de Rondnia.

O debate de dcadas sobre a recuperao e pavimentao da BR-319 se concentra em grande parte nas consequncias econmicas e ambientais. No entanto, durante cinco dias em Igap-Au, a InfoAmazonia registrou como o conflito entre o desenvolvimento e a preservao tambm tem impactos na sade pblica da populao que margeia a rodovia.

Para as comunidades ao longo da BR-319, onde o saneamento bsico inadequado, o o gua potvel limitado e hospitais so distantes, ter a rodovia pavimentada poderia melhorar o o a servios de sade pblica. Por outro lado, povos indgenas no entorno dizem que a estrada tem causado desmatamento e poluio perto dos territrios, o que impacta na sade das comunidades.

A pavimentao da rodovia tambm pode causar o aumento de doenas infecciosas e at novas pandemias, conforme um alerta divulgado em fevereiro do ano ado em uma pesquisa liderada pelo cientista da Universidade de So Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e doutor em biologia, Lucas Ferrante.

A rea ao redor da rodovia abriga inmeros patgenos

Patgenos so microrganismos ou agentes biolgicos que causam doenas em organismos vivos. Eles podem ser bactrias, vrus, fungos, protozorios ou parasitas
ainda desconhecidos pela cincia. Caso a pavimentao impacte o desmatamento na regio, pesquisadores afirmam que os microrganismos podem aumentar sua capacidade de multiplicao entre as espcies, enquanto a populao de mosquitos e outros vetores de doenas pode crescer. O desenvolvimento da rea tambm colocaria as pessoas em contato com novas doenas.

“Nossos monitoramentos indicam a presena de patgenos com alta capacidade de transmisso nesta rea. A regio abriga uma diversidade de vrus, fungos e bactrias ainda desconhecidos, muitos dos quais possuem um elevado potencial infeccioso”, alertou Ferrante, acrescentou que esses indcios sugerem “um aumento na transmisso de patgenos de contato, impulsionado pela maior mobilidade proporcionada pela rodovia”.

Nossos monitoramentos indicam a presena de patgenos com alta capacidade de transmisso nesta rea. A regio abriga uma diversidade de vrus, fungos e bactrias ainda desconhecidos, muitos dos quais possuem um elevado potencial infeccioso.

Lucas Ferrante, cientista que estuda os impactos da pavimentao da BR-319
Casas na comunidade Igap-Au, onde moradores vivem sem assistncia de sade (Foto: Nicholas Miller/InfoAmazonia)

Professor de gentica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que estuda como a ruptura ambiental na Amaznia influencia as doenas infecciosas, Joel Henrique Ellwanger concorda com Ferrante. “As rodovias na Amaznia so sabidamente vetores do desmatamento e perda da biodiversidade”, disse.

Ellwanger destacou que as perdas ambientais so fatores que “contribuem para que novos patgenos atinjam as populaes humanas, com risco de surgimento de novas pandemias, levando a perdas econmicas astronmicas e custos em termos de vidas humanas”.

Vrios presidentes brasileiros declararam inteno de pavimentar a BR-319. No entanto, at hoje, os trechos asfaltados so os que ficam nas extremidades, perto de Manaus e de Porto Velho. Uma licena prvia para as obras na rodovia chegou a ser emitida em 2022, na gesto do ex-presidente Jair Bolsonaro. A medida foi parar na Justia, chegou a ser cancelada, mas voltou a valer em outubro de 2024 aps deciso do Tribunal Regional Federal da 1 Regio. Mas, ainda assim, o destino da rodovia est longe de ser decidido.

Uma comunidade vivendo da estrada 273h38

Inaugurada em 1976, a BR-319 foi um componente-chave do plano da ditadura militar para colonizar a Amaznia. Inicialmente, a rodovia foi construda de asfalto, o que estimulou a chegada de pessoas de fora na regio. Mas, uma dcada aps a abertura, a estrada caiu em desuso. Quase 40 anos depois, em 2015, voltou a ser usada.

Balsa faz a travessia de carros no rio Igap-Ao, na BR-319 (Foto: Nicholas Miller/InfoAmazonia)

A rodovia tem uma extenso de ao menos 900 km. O trecho mais crtico, conhecido como “trecho do meio”, tem aproximadamente 400 km que, em perodos chuvosos, torna-se quase intransitvel.

A vida dos moradores de Igap-Au indissocivel do debate sobre a BR-319. L, as casas construdas de tbuas de madeira e palafitas ficam todas de frente para a estrada. Algumas funcionam como ponto de apoio para motoristas de caminhes que am pela regio com fome e cansados, enquanto a maioria dos empregos so de uma balsa lenta que transporta carros pelo estreito rio que d nome comunidade.

Uma das lderes da comunidade, Nilda Castro dos Santos, conhecida como Dona Mocinha, vive em Igap-Au desde 1980. Ela conta que no auge da rodovia, a regio chegou a ter 100 famlias. Mas, depois que a estrada foi fechada, a famlia dela foi uma das cinco que permaneceram. “Foi muito sofrido”, disse. “Foram 20 anos de sofrimento.”

Joo Joventino Cordeiro mora prximo a Igap-Au e conta sobre as dificuldades de viver na regio (Foto: Nicholas Miller/InfoAmazonia)

Joo Joventino Cordeiro, que chegou em uma comunidade perto de Igap-Au antes mesmo de Dona Mocinha, vivenciou uma desolao semelhante quando a estrada fechou. “aram 30 anos sem ar um carro”, disse ele, acrescentando que chegar a um mdico era praticamente impossvel: “S Deus cuidava de ns.”

Depois que a rodovia foi reaberta em 2015, as pessoas voltaram para comunidades como Igap-Au. Atualmente a regio recebe um fluxo consistente de caminhoneiros, viajantes e grupos de motociclistas aventureiros. A realidade de hoje ainda est muito menos movimentada do que quando tinha asfalto, dizem os moradores.

Nas comunidades ao longo da rodovia h poucos empregos, a atividade econmica escassa e a maioria dos servios est a centenas de quilmetros, como a capital Manaus, distante cerca de 270 km. Em Igap-Au, o hospital mais prximo fica na cidade de Careiro Castanho, a 150 km de estrada no pavimentada.

Morador da regio h quase 50 anos, Antnio do Boto, conhecido como “Seu Botinho”, resume como a situao na localidade quando alguma pessoa adoece:

“No tem uma ambulncia para levar. Pode perder a vida porque no tem uma conduo.”

No tem uma ambulncia para levar. Pode perder a vida porque no tem uma conduo.

Antnio do Boto, morador de Igap-Au h 50 anos
Antnio do Boto, o ‘Seu Botinho’, mora h 50 anos de Igap-Au, onde trabalha na preservao de tartarugas (Foto: Nicholas Miller/InfoAmazonia)

Ele trabalha com um projeto para restaurar as populaes de tartarugas da regio. Embora acredite na melhoria para a sade local, tambm frisa a preocupao com os impactos ambientais relacionados ao desmatamento caso ocorra as obras de recuperao da rodovia.

“As caas, animais, os pssaros que vivem dentro da floresta comeam a se afastar. E voc no v mais um pssaro, voc no v mais um animal mais prximo”, pontuou.

A assistncia mdica uma das muitas coisas que as pessoas de Igap-Au esperam se torne mais vel caso ocorra a pavimentao da rodovia. Para eles, a obra reduziria o tempo de durao da viagem, enquanto que o aumento da frequncia de transportes como nibus poderia fornecer uma viagem mais confivel at Careiro.

O cientista Lucas Ferrante acredita que uma soluo melhor para os problemas de falta de o sade dos moradores seria redirecionar os bilhes de reais necessrios para a pavimentao da rodovia, investindo, em vez disso, na oferta de cuidados de sade adequados para quem vive na regio.

“Se a gente pegasse os recursos da pavimentao e alocasse para a sade e educao nos municpios, resolveramos o problema dos municpios”, pontuou.

Se a gente pegasse os recursos da pavimentao e alocasse para a sade e educao nos municpios, resolveramos o problema dos municpios.

Lucas Ferrante, cientista que estuda os impactos da pavimentao da BR-319

Impacto s terras indgenas 938d

O impacto das obras na BR-319 chegar a 68 terras indgenas, conforme um estudo realizado por Ferrante em 2020. Alm disso, um levantamento exclusivo da InfoAmazonia revelou que a abertura de ramais ao longo da rodovia atingiria 38 unidades de conservao. Um desses territrios o do povo Mura, no municpio Manicor.

A menos de 40 km da rodovia, o povo indgena tem registrado com mais frequncia casos de diarreia e doenas respiratrias, afirma Adamor Leite, uma das lideranas da regio.

Trecho da BR-319, na Amaznia (Carolle Alarcon/Cedida/OBR-319)

Leite afirma que os problemas tm sido causados por agricultores e caadores que entram na regio por meio da estrada. Essas pessoas, segundo ele, poluem rios, destroem as fontes de alimentos e remdios, e contribuem para espalhar organismos causadores de doenas.

“Aumentou essa questo da infeco respiratria, da gripe e da virose”, disse Leite, acrescentando que o desmatamento destri “as plantas medicinais que so usadas em tratamento de algumas doenas”.

O lder indgena tambm acredita que com a pavimentao da rodovia, o territrio corre o risco de sofrer invases com as aberturas de mais ramais, que so estradas abertas a partir de uma via principal — neste caso, a BR-319.

“Se [a estrada] for pavimentada, [o desmatamento] aumenta e isso pode causar um dano pior”, frisou o lder indgena.

Indgenas do povo Juma tambm relatam preocupao com a presena de pessoas de fora prximo ao territrio, situao que se agravaria numa eventual reconstruo na BR-319. O territrio deles fica no municpio de Lbrea, na regio do rio Au, no sul do Amazonas, prximo rodovia.

“A gente percebeu que os no-indgenas vm caar dentro do nosso territrio, que era para ter a nossa alimentao”, afirma Kunhave Juma, presidente da Associao do Povo Juma.

Pesquisadores avaliam que o governo federal no tem dinheiro ou estrutura suficiente para fiscalizar efetivamente a rea, incluindo os territrios indgenas.

Desmatamento e crise climtica 453o5h

Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais, publicado em 2020, apontou que a pavimentao da BR-319 poderia quadruplicar as taxas de desmatamento e as emisses de carbono no entorno, o que impediria o pas de alcanar as metas de reduo de emisses de carbono com as quais se comprometeu no Acordo de Paris.

Outro reflexo seria no cenrio climtico da Amaznia em que as ondas de calor em Manaus tornariam a cidade quase inabitvel, conforme estima Lucas Ferrante.

Para se ter ideia do impacto que a pavimentao da rodovia pode causar, at os anncios governo de fazer obras na rodovia levaram a um aumento no desmatamento. Entre 2020, quando Bolsonaro disse que o asfaltamento seria prioridade, e 2022, o desmatamento no entorno da BR-319 subiu 122%, segundo o Observatrio do Clima. A estrada soma 6.500 quilmetros de ramais ilegais no entorno, seis vezes a extenso da rodovia original, segundo pesquisa de Ferrante.

Mas, alm do colapso da biodiversidade e do aumento das emisses de carbono, a degradao ambiental histrica da BR-319 poderia ser acelerada pela nova pavimentao e causar impactos transformadores na sade pblica para quem vive na regio.

‘O bom e o ruim’ 104f5y

Durante a visita em dezembro a Igap-Au, as implicaes da pavimentao BR-319 para a sade pblica ficaram ainda mais aparentes.

Entre os moradores atendidos pela equipe da Fiocruz e Unicamp, havia uma jovem me foi diagnosticada com nveis preocupantes de glicemia. Na mesma regio, um homem perdeu trs porcos para a raiva e no conseguiu que alguma equipe de sade vacinasse sua esposa ou seu filho – um reflexo da falta de sade pblica para quem vive no entorno da BR-319.

Dona Mocinha vive em Igap-Au, na margem da BR-319, desde 1980 (Foto: Nicholas Miller/InfoAmazonia)

Cerca de um ano atrs, Dona Mocinha adoeceu com uma “doena misteriosa”. “Fiquei mais de uma semana de cama com febre, frio, com muita dor no corpo. E no sabia o que fazer”, disse.

Com a visita dos pesquisadores da Fiocruz, Dona Mocinha fez um teste e o diagnstico foi o de febre Oropouche, doena que tem tem sintomas semelhantes aos da dengue, transmitida principalmente por um mosquito conhecido popularmente como maruim ou meruim.

“Falaram para mim o que eu senti foi de picada de maruim que me deu aquele mal-estar, aquela febre”, relembrou.

Em 2024, pesquisadores da Fiocruz identificaram uma nova cepa da Oropouche que se originou na Amaznia e teve maior incidncia da na regio da AMACRO

Regio de 45 milhes de hectares na divisa entre Amazonas, Acre e Rondnia, criada a partir de um projeto idealizado para incentivar o agronegcio como modelo de desenvolvimento
, conhecida como “fronteira do desmatamento”.

Dona Mocinha, que apoia a pavimentao da rodovia pelos benefcios econmicos que traria comunidade, expressou preocupao com os impactos negativos da rodovia, seja o aumento da destruio ambiental, crime ou doena.

“Com o desenvolvimento da estrada, vem de tudo. O bom e o ruim”, disse ela, acrescentando: “No meio do bom aparecem as coisas ruins tambm, at a doena”, refletiu.

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