Depois de dois anos marcados pela Covid-19, os europeus estavam ansiosos para retomar a frequentao normal das estaes de esqui nas frias de fim de ano em dezembro – mas a desregulao do clima atrapalhou os planos. Sem neve, metade das pistas na Frana estiveram fechadas no fim do ano, e uma parte considervel das que puderam abrir s funcionaram graas ao uso de neve artificial.
O pas, assim como os vizinhos alemes ou austracos, viveu uma rara onda de calor no perodo. “Ns ultraamos ndices recordes em vrias regies da Frana e do leste da Europa, principalmente nos dias 31 de dezembro e 1 de janeiro, datas simblicas. As temperaturas estavam de 1C a 2C acima do normal, e chegaram a ar de 22C no sudoeste francs – mas tambm na regio central, no norte, no leste, as temperaturas chegaram a nmeros totalmente excepcionais para a estao”, explica o climatologista Robert Vautard, diretor do Instituto Pierre-Simon Laplace (IPSL), que rene especialistas das cincias climticas.
As altas temperaturas, associadas chuva tambm atpica, levaram ao derretimento da pouca neve que cobria as estaes em baixa e mdia altitude, como em Mont Dore, no centro da Frana, onde a decoradora Amandine Pernelle tinha escolhido ar as frias com a famlia. No local, uma camada de neve de cultura (fabricada a partir da pulverizao de gua) havia sido aplicada em novembro, espera dos primeiros flocos da temporada, no incio de dezembro. Mas com os termmetros subindo a mais de 10C, s as crianas puderam aproveitar.
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“Estou acostumada com a neve artificial. Sempre que eu fui esquiar, tinha na parte baixa das estaes, ento isso no me choca. E sem contar que, para o clima, melhor ficar na Frana e esquiar na neve artificial que pegar avio em busca de calor nos trpicos”, comenta a sa.
CADA VEZ MAIS NEVE ARTIFICIAL
O recurso neve de cultura recomendado para prorrogar a durao da neve natural que cair nos meses frios – e que, segundo os especialistas, tende a se tornar mais rara. A prtica comum nos pases europeus e se tornou indispensvel a partir dos anos 2000, com a subida progressiva das temperaturas devido s mudanas climticas.
Entretanto, os ecologistas criticam o alto volume de gua utilizada para ser transformada em neve: 1m de gua resulta no dobro de neve artificial, num total de pelo menos 20 milhes de metros cbicos de gua usada por ano para este fim, na Frana. Hoje, mais de um tero das pistas sas e a metade ou mais das suas e austracas usam essa soluo, principalmente a menos de 1,5 mil metros de altitude.
“A gua retirada do meio natural na primavera quando abundante. Se ela no recuperada aps o derretimento da neve e estocada em lagos artificiais, ela seria perdida”, rebate Jean-Luc Boch, presidente da Montagnes, que rene os principais organismos de turismo nas montanhas da Frana.
“Essa gua correria pelos riachos, depois nos rios, afluentes e enfim no Mar Mediterrneo. Estoc-la no momento em que ela muito abundante significa poder devolv-la para todo o nosso territrio, lembrando que ela tambm pode servir para consumo humano e animal, se necessrio”, afirma.
INCERTEZAS SOBRE O FUTURO
Boch ressalta que ainda “h muita variao” entre os anos e “no h certezas absolutas” sobre o futuro: o inverno com mais neve em dcadas ocorreu h cinco anos, relembra. Mas outro ator importante do setor, o secretrio-geral do Domaines Skiables de , Laurent Reynaud, analisa a situao com mais cautela e diz que o tema “ levado muito a srio”.
“Sabemos que, no futuro, deveremos enfrentar uma incerteza ainda maior sobre a ocorrncia de neve e tambm sobre a cobertura de neve, principalmente nas estaes de baixa altitude. Cada uma delas vai precisar elaborar um planejamento para os 15, 20, 50 ou 80 prximos anos. Essas projees j existem e foram determinadas pelo IPCC [ da ONU de cientistas especialistas nas mudanas climticas]”, indica Reynaud.
As estaes mais vulnerveis so estimuladas a diversificar as atividades, de modo a atrair turistas durante todo o ano, com foco no s no inverno, mas tambm no vero. Quanto ao uso da neve artificial, Reynaud destaca que a transio ecolgica tambm est em curso no setor.
“Hoje, em todos os processos industriais, teremos medidas de sobriedade energtica e eco-concepo, para conseguirmos aproveitar ao mximo um litro de gua ou 1kw/h. Dividimos por trs o consumo eltrico necessrio nos compressores de gua, para a produo de um metro cbico de neve, e conseguimos reduzir 10% do consumo de eletricidade dos telefricos, responsveis pela maior parte do consumo eltrico nas estaes”, pondera o representante das pistas de esqui sas.
FALTA DE NEVE NA PRIMAVERA GERA PREJUZO AGRCOLAS
O climatologista Robert Vautard observa ainda que a falta de neve prejudica a atividade econmica e o turismo nas montanhas, mas tambm atinge a natureza como um todo e, em especial, a agricultura.
“Organismos que criam doenas nas rvores e plantas so eliminados no inverno, com o gelo. Sem frio, eles acabam se reforando na primavera e isso altera a produo agrcola, em especial de frutas”, aponta o especialista em fenmenos meteorolgicos extremos. “O fato de que a vegetao comea mais cedo do que o previsto faz com que os brotos fiquem expostos a eventuais geadas em abril. um fenmeno em que todo ciclo da natureza comea mais cedo porque est quente demais.”
Por essa razo, graves prejuzos agrcolas tm sido frequentes no pas: aconteceram em 2022, 2021 ou 2017, relembra o pesquisador. Este ms de janeiro j se anuncia mais seco que os padres, o que pode ser um indcio de mais um ano marcado por temperaturas em alta.
“De forma geral, se observarmos as variaes das temperaturas em 2022 na Frana, em relao aos padres, h muito poucos episdios – apenas trs ou quatro, e muito curtos – em que as temperaturas estiveram abaixo do normal. Em todas os outros, elas estiveram acima”, destaca Vautard. “ claro que sempre teremos variaes meteorolgicas, mas nos prximos anos, devemos esperar a mesma tendncia de alta verificada em 2022.”
O pesquisador frisa ainda que seria um erro comparar este incio de inverno ameno na Europa com as nevascas que atingiram os Estados Unidos no mesmo perodo. Na Amrica do Norte, explica, as variaes de temperaturas sempre foram “extremamente fortes” e mais intensas que no continente europeu, e no so uma consequncia das mudanas climticas, mas sim da geografia.
Enquanto as massas de ar frio que descem do Midwest americano no encontram uma zona martima que amenizaria a temperatura, este no o caso em pases como a Frana, onde os Alpes so influenciados pelo clima mediterrneo.
Fonte: G1