Elas deveriam ser um escudo protetor da floresta junto a uma rodovia federal, mas unidades de conservao e terras indgenas sofrem grilagem, desmate e fogo. Se no forem contidos, os crimes podem comprometer a conservao socioambiental da Amaznia e o equilbrio climtico mundial.
Quatro em cada dez parques e outros tipos de unidades de conservao criadas por diferentes governos na regio ao longo da BR-319, entre as capitais Porto Velho (RO) e Manaus (AM), perderam no ano ado uma rea de florestas similar a quase 1,35 mil campos de futebol, ou 962 ha.
A mais desmatada foi a Reserva Extrativista Jaci-Paran, em Rondnia, onde foram destrudos 880 ha, ou mais de 90% do total. Ela est distribuda entre os municpios de Porto Velho, Nova Mamor e Buritis.
Recuando ainda mais no tempo, a situao no menos grave.
As reservas mais afetadas nos ltimos 15 anos incluem o Parque Nacional Mapinguari, as florestas Estadual Tapau e Federal do Bom Futuro, a rea de Proteo Ambiental Tarum-Ponta Negra e a Terra Indgena Karipuna, sitiada por estradas e desflorestamento.
Essas reas protegidas tambm esto entre as que mais registraram focos de calor no decorrer dos anos, alm do Parque Nacional dos Campos Amaznicos e da Reserva de Desenvolvimento Sustentvel do Tup. Esses pontos quentes podem ser florestas e pastos queimando ou at solo exposto.
O cenrio acima parte do revelado pelo Observatrio BR-319 num relatrio atualizado sobre as 42 unidades de conservao e 69 terras indgenas ao longo da rodovia (veja um mapa aqui). A anlise pesou de 2010 ao ano ado. O Observatrio uma rede de organizaes civis.
Mas, quais so as causas das ameaas floresta e s populaes que mais dela dependem? Heitor Pinheiro, do Instituto de Conservao e Desenvolvimento Sustentvel da Amaznia (Idesam) e responsvel por geoprocessar o monitoramento satelital do OBR-319, afirma que elas mudam a cada regio.
Segundo o analista, ao sul da rodovia predomina o desmate ilegal para formao de pastos, enquanto nas demais reas h mais explorao ilcita de madeira e aumento de focos de calor pelo uso do fogo, usado na “limpeza de grandes reas a baixo custo”.
Mapeamentos de desmatamento (topo) e de focos de calor (abaixo) na rea influenciada pela BR-319. Fonte: Retrospectiva 2024: Desmatamento e focos de calor na rea de influncia da rodovia BR-319 / OBR-319
A anlise tambm revelou um sobe e desce dessas presses nas diferentes istraes federais. A tendncia de queda verificada de 2010 a 2014 foi seguida por grande aumento na destruio florestal nos mandatos de Michel Temer e sobretudo de Jair Bolsonaro.
“Invasores falavam abertamente que nossas terras seriam liberadas porque tinham apoio do governo”, lembrou Eric Karipuna, liderana na Terra Indgena Karipuna. “Perdemos muita rea para eles formarem pastos e cultivos como de abacaxi, caf e banana”, reclamou.
Os picos de desmate e de pontos quentes foram registrados especialmente at 2022, ano em que a regio cortada pela BR-319 perdeu 169 mil ha, a maior taxa verificada no monitoramento no-governamental. A rea pouco maior que a da capital So Paulo (SP).
“Esse cenrio foi impulsionado pela desestruturao institucional promovida pelo governo da poca, ilustrado pela fala sobre “ar a boiada” e eventos como o “Dia do Fogo”, que afetou tambm a regio da BR-319”, avaliou o socilogo Marcelo Rodrigues, secretrio-executivo do OBR-319.
Quanto ao atual governo Lula, ele pondera que trouxe algum alento, com rgos e polticas socioambientais sendo reestruturados e desmatamento caindo, mas que nem tudo so flores naquela regio amaznica. “O cenrio permanece distante do ideal”, resumiu.
“A rodovia segue registrando altos ndices de desmate, com destaque para o aumento dos focos de calor – um forte indicador de degradao florestal. Esse processo torna a rea mais suscetvel a incndios e favorece novos ciclos de desmatamento”, analisou Rodrigues.
Fogo e destruio da Amaznia ganham fora com desmatamento, temperaturas em alta e secas cada vez mais potentes. Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace
Na prtica, cheias, secas e temperaturas em alta fragilizam a sade da floresta e facilitam o avano do fogo, que pode ser ilegal ou autorizado por governos. Muitos incndios procuram consolidar a ocupao criminosa de terras ou resultam do descontrole de queimadas agropecurias.
Mas, o cenrio destruidor tem combustveis polticos. Um salto de 85% no desmate regional ocorreu de setembro a dezembro ados, logo aps uma visita e discurso de Lula prometendo completar o asfaltamento da BR-319 ainda neste mandato, que acaba no fim de 2026, conforme reportagem de Cley Medeiros no jornal A Crtica.
“A cada sinalizao de apoio governamental rodovia, terras e negcios so valorizados, estimulando mais desmatamento”, descreveu Philip Fearnside, pesquisador titular no Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (Inpa).
“E o discurso no poderia ter ocorrido numa poca pior, quando o Brasil estava coberto de fumaa e os rios da Amaznia e suas populaes enfrentavam uma seca histrica”, lembrou o tambm doutor em Cincias Biolgicas na Universidade de Michigan (Estados Unidos).
Alm disso, fiscalizaes e outras aes pontuais no estariam livrando a regio da criminalidade. “Ano ado teve uma desintruso, mas foi como ‘chover no molhado’. Eles voltaram a agir logo depois de ada a operao”, denunciou Erica Karipuna.
A “desintruso”, a retirada de invasores e estruturas ilcitas na Terra Indgena Karipuna, foi comemorada pelo Governo Lula em julho ado. O anncio da poca listou mais de 20 edificaes ilegais destrudas e 54 m3 de madeira apreendidos.
Mancha de desmatamento na Terra Indgena Karipuna. Foto: Lideranas Karipuna/Divulgao/Agncia Brasil
Ameaas revividas 255n45
Assim como a hidreltrica de Belo Monte, projetos como o da BR-319 foram paridos na Ditadura Militar. Ela foi aberta entre 1968 e 1973, rompendo a floresta por quase 900 km, ento todos transitveis. Contudo, j em 1988 estava abandonada e sendo retomada pela floresta.
Governos em srie tentaram reabri-la, mas isso sempre bateu de frente com a resistncia do setor socioambiental brasileiro e internacional, temendo que ela replicasse a devastao e as invases que marcaram outras estradas amaznicas.
Apesar das lies adas, desde 2015, no governo Dilma Rousseff, trechos da BR-319 recebem “manuteno” com asfalto. Isso a tornou transitvel novamente, ao menos na seca. Nas chuvas, boa parte dela se torna uma armadilha de lama para quem se atreve a cruz-la.
A licena prvia para asfaltar 400 km e reconectar toda a rodovia, emitida no governo Bolsonaro, alvo de uma Ao Civil Pblica. As obras s podem comear com a prxima licena, a de instalao. Enquanto isso, foram autorizadas reformas de trechos menores e de pontes, como sobre os rios Curu e Autaz-Mirim, disse o OBR-319.
A que mora muito perigo, dizem as fontes ouvidas pela reportagem. A reconstruo completa da estrada ligar a conservada poro central da Amaznia a um dos epicentros nacionais de desmatamento, a regio da Amacro, entre os estados do Amazonas, Acre e Rondnia.
“Muito disso encorajado pelos governos, que por inao ou com polticas subsidiam a transformao da floresta em pastagens, soja e outras culturas”, avaliou Philip Fearnside (Inpa).
O cenrio mais preocupante pois o o da grilagem e desmate desde o “Arco do Desmatamento” pode ser tambm azeitado por outros projetos rodovirios, como a da federal BR-421 e da estadual AM-366, essa cortando o Parque Nacional Nascentes do Jari.
No bastando, h igualmente grandes projetos para extrair gs e petrleo na mesma regio influenciada pela BR-319.
Com tudo isso em campo, aproximadamente metade do que resta da floresta amaznica brasileira seria prejudicada, gerando duros baques na conservao socioambiental, encolhendo as chuvas que caem no restante do pas e desequilibrando de vez o clima planetrio.
“A vasta rea aberta por estradas contm Carbono suficiente para empurrar o aquecimento global para alm de um ponto de no retorno [irreversvel]”, ressaltou Fearnside, doutor em Cincias Biolgicas na Universidade de Michigan (Estados Unidos).
O alerta reforado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Elas apontam que, at 2050, a restaurao da BR-319 levar ao desmate de 170 mil km2 e emisso de 8 bilhes de toneladas de CO2 – taxas quatro vezes acima da mdia histrica regional. Os nmeros so do especial “A Estrada da Discrdia na Amaznia”.
Vegetao e solo amaznicos estocam grande volume de gs carbnico, que, quando liberado por queimadas, desmate e degradao florestais, aumenta o efeito-estufa e a temperatura mdia globais. Essas so a maior contribuio brasileira crise climtica, aponta o Observatrio do Clima.
Desde o topo, caminhes aguardam para cruzar, de balsa, um rio que corta a BR-319; a rodovia enlameada nas chuvas; e um caminho percorre um sinuoso trecho da estrada. Fotos: Nilmar Lage / Greenpeace
Caminho tortuoso 1t5z2d
Para Marcelo Rodrigues, secretrio-executivo do OBR-319, conter desmate e degradao florestais na regio depende de medidas como estruturar uma fiscalizao gil e estimular economias que mantenham a floresta em p, envolvam e beneficiem as comunidades locais.
“O primeiro o para alcanar resultados mais sustentveis assegurar uma governana efetiva no territrio antes mesmo da realizao de obras de infraestrutura – algo que deveria ser natural”, acrescentou.
J Philip Fearnside (Inpa) prev mais destruio se a BR-319 for toda recuperada e no poupou crticas aos governos, que permitiriam a corroso social e ambiental ao longo da rodovia. Para ele, as promessas de controle do desmate s servem para acelerar seu asfaltamento.
“Quando se abre uma rea, so milhares de atores independentes tomando decises. No o governo que manda”, analisou o cientista, que pesquisa e reside na Amaznia desde 1978.
Para ele, insistir em obras como essa mostra que o Brasil est no “caminho errado” e que no tem como conduzir o mundo para enfrentar a crise climtica, como pretenderia se posicionar na COP30, em novembro, no Par. “Tem que liderar pelo exemplo e fazer aqui primeiro”, disse.
Consultado sobre a situao legal e tcnica do licenciamento ambiental do trecho central da BR-319, o Ibama no se pronunciou at o fechamento desta reportagem.
Aldem Bourscheit h6w1w
Jornalista cobrindo h mais de duas dcadas temas como Conservao da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Cincia, Agron... →